tribunaexpresso.ptDuarte Gomes - 19 set. 12:29

Se acham difícil gerir uma equipa de futebolistas, esperem até apanhar uma de árbitros (por Duarte Gomes)

Se acham difícil gerir uma equipa de futebolistas, esperem até apanhar uma de árbitros (por Duarte Gomes)

Duarte Gomes escreve sobre as dificuldades da gestão de uma carreira de progressão complicada e de escrutínio intenso

Os jogos das equipas portuguesas na Liga dos Campeões foram (e serão) dirigidos por árbitros espanhóis.

Na terça-feira, o jovem Jesús Gil Manzano, de apenas trinta e três anos de idade, esteve em Gelsenkirchen; hoje o experiente António Mateu Lahoz estará na Luz.
Dois estilos parecidos – ambos têm perfil dialogante, embora Lahoz seja muito (muito!) mais interventivo e expressivo – e, a par de Carlos Del Cerro, foram/são aposta para a jornada inaugural da fase de grupos da liga milionária.

A arbitragem portuguesa, com menos recursos e juízes que a espanhola, não deixa as coisas por mãos alheias e, habitualmente, faz-se representar nestes palcos: Artur Soares Dias foi promovido à “Elite” e será seguramente aposta para várias partidas das jornadas seguintes; Jorge Sousa, embora no Grupo 1, tem categoria reconhecida e é chamado, com frequência, para jogos deste calibre.

Por cá, a grande aposta é fazer “saltar” para a ribalta árbitros que estão, por enquanto, na parte inferior desse ranking.

No atual quadro dos que ostentam as insígnias FIFA, os “veteranos” Hugo Miguel, João Capela e Carlos Xistra terão reduzidas hipóteses de chegar mais longe, sobretudo porque as suas idades não permitem outra ambição.

O mesmo já não acontece, por exemplo, com Tiago Martins, Fábio Veríssimo, João Pinheiro ou Luís Godinho. Os quatro, mais novos, têm espaço/tempo para progredir e legitimidade para sonhar com outros patamares na hierarquia da arbitragem internacional.

Vem esta questão a propósito da gestão interna da arbitragem. Ela é, acreditem, difícil. Muito dificíl.

Enquanto o mundo exterior escrutina apenas aquilo que os olhos vêem e que o coração sente – ou seja, nomeações, penáltis, vermelhos e afins –, intra-muros o trabalho, invisível aos olhos de muitos, é minucioso e intenso.

Ao contrário de um treinador, o líder da arbitragem e a sua equipa não escolhem, no imediato, o plantel que têm ao dispor. Eles herdam (do Conselho de Arbitragem anterior) um grupo de juízes, já escalonados nas respetivas categorias. E é com esses que trabalham, que começam a impôr as suas ideias e a criar rotinas, sem direito a dispensas ou a contratações no mercado de inverno.

NurPhoto

O desafio, amplo e variado, passa pela planificação da época (agendar ações de formação, cursos de aperfeiçoamento, realização de testes físicos e escritos, etc) à exigente gestão quotidiana, sem esquecer a renovação regulamentar, porque é fundamental manter a arbitragem atualizada, modernizada e, sobretudo, transparente.

Como pano de fundo, a meta é ainda mais exigente:

– Aumentar a qualidade técnica e qualitativa dos árbitros e harmonizar o quadro nos vários escalões (incluindo categorias distritais);

– diminuir a contestação exterior através de uma estratégia de comunicação oportuna, concertada e coerente;

– corrigir erros ou padrões de comportamento de ordem técnico-disciplinar, que se tornem, a determinado momento, mais visíveis ou censuráveis;

– reforçar o treino de áreas tão vitais como o da nutrição, da gestão das relações/emocões ou da "defesa" da imagem pública/social; personalizar, ao máximo, o acompanhamento físico e psicológico, de forma a retirar o melhor de cada um...

Enfim, uma panóplia de objetivos que tornam a função de dirigente numa atividade quase heróica.

Tudo, claro está, com sujeição diária e constante ao implacável escrutínio público. Um escrutínio farto em grosseria e curto em tolerância.

Acresce a isso o novo desafio, o da vídeo-tecnologia. E esse requer ainda mais atenção. A formação é permanente e são várias as dores de cabeça no que diz respeito à gestão do quadro disponível. Treinar árbitros de campo é uma coisa, preparar videoárbitros é outra. E eles são os mesmos.

Agora imaginem tentar concretizar tudo isto tendo um plantel reduzido e onde há, em simultâneo, jovens com seis, sete anos de carreira e veteranos com dezoito, dezanove... de Primeira Liga (!).

Ah! E não esqueçamos as lesões e os respetivos períodos de ausência, os impedimentos pessoais e muitas outras variáveis que, não raras vezes, reduzem ao mínimo as opções de quem tem a função de nomear, avaliar e decidir.

Não pense o caro leitor que tudo isto é um trabalho impossível, feio e castrador. Não, não é. O desafio é tremendo mas bem aliciante.

A descrição mais detalhada foi para que percebesse, com a verdade prática das coisas, que dirigir a arbitragem em Portugal (ou em outro qualquer campeonato do planeta) é sinónimo de trabalho exaustivo e muito delicado.

Há árbitros, de vários pontos do país, de várias idades e de categorias distintas (não esqueçamos as variantes de futebol feminino, futsal e futebol de praia). E há observadores, técnicos, preparadores físicos, etc. Um mundo heterógeneo, com centenas de almas, cujas rédeas são puxadas por quem está no comando.

Uma das preocupações atuais – e confesso que complicada de resolver – é a de ter que dar "minutos" a jovens árbitros que agora chegaram ao futebol profissional.

No fim de semana passado, percebeu-se que a tentativa - justificada e bem intencionada - teve (em casos mais mediáticos) efeitos práticos adversos. O dilema é permanente, senão repare:

Por um lado, um juiz só pode crescer em experiência, qualidade e confiança se arbitrar jogos que o ponham à prova, que o testem e coloquem sob pressão.

Por outro, em alta competição, não pode haver grande espaço para “testes”, porque há demasiada coisa em jogo e a expectativa exterior - legítima - é que quem lá chegue esteja na fase final do processo de aprendizagem, não na rampa de lançamento.

Complicado, não é?

Michael Dodge

Um dos grandes problemas, também ele estrutural e dificilmente ultrapassável, é que a diferença entre o futebol profissional e o dito futebol amador, o do escalão logo abaixo, é enorme. Gigante, até.

Geralmente, um árbitro C2 (de segunda categoria) arbitra jogos disputados por futebolistas amadores, que pertencem a clubes amadores, que têm naturalmente infraestruturas amadoras.

Jogos em que as bancadas estão quase sempre despidas e onde não há mediatismo, escrutínio e há pouca pressão exterior. A exigência, aí, é bem menor. São testados nas suas competências técnicas (a do uso do apito), mas não nas mais importantes (as humanas).

Quando sobe ao escalão máximo, passa a dirigir jogos com equipas totalmente profissionais, que têm... jogadores profissionais. Jogadores que até conhece das cadernetas que colecionava em miúdo ou dos resumos que via na TV.

Jogos que, geralmente, têm muito mais pessoas a assistir (alguns, várias dezenas de milhar de adeptos), que têm transmissão televisiva em direito, que têm dezenas de fotógrafos e jornalistas perfilados à sua frente. Jogos que têm outras regras e exigências e uma organização mais apurada.

Ali, no meio do ruído que até então desconhecia, o jovem árbitro sente-se uma cria de coelho atirada aos lobos. Uma espécie de alien. Deslocado.

Sabe que sabe apitar mas não sabe se sabe arbitrar.

Há mais qualidade competitiva, mais pressão, mais coisas em jogo, em alta competição.

O salto que dá é tão grande que, muitas vezes, só quando chega à 1a Liga é que dirige o seu primeiro jogo... à noite. Com luz artificial. E com tudo o isso implica em termos de adaptação, preparação e habituação.

Minudências aos olhos do povo, pormaiores aos olhos de quem está lá dentro.

Como em quase tudo no desporto e na vida, estou convencido que o segredo para o sucesso mora ali pelo meio, numa palavrinha pequena mas poderosa, chamada... equilíbrio.

Quem nomeia, quem dirige, quem comanda, sabe que melhor forma de gerir realidades tão antagónicas é de forma ponderada e sensata.

Os jovens árbitros têm, sim, que dirigir jogos com elevado grau de dificuldade (dentro e fora do relvado), mas devem fazê-lo de forma evolutiva. Lenta, mas gradual. Paulatina.

É visível que é isso que está a ser feito, mas infelizmente, há riscos. O principal são os decibéis, ora compreensíveis ora excessivos, que se fazem ouvir de cada vez que um árbitro menos preparado não está à altura dos acontecimentos.

O importante é que os destinatários finais das suas atuações - jogadores, adeptos e até imprensa - tenham por aqueles a mesma tolerância que têm pelos talentos precoces que corajosamente são lançados pelos seus técnicos.

São realidades diferentes, eu sei, mas não sendo a alternativa mais justa, é a única possível. É a única forma de "crescerem".

Tudo poderá ser diferente, para melhor, num futuro próximo se passarem a ascender à primeira os árbitros que tenham - além de forte potencial técnico e boas condições físicas -, maior personalidade, mais sensibilidade para o jogo e forte estrutura moral/intelectual.

A questão é que quantidade e qualidade nem sempre jogam na mesma equipa e... não é fácil. Não é mesmo fácil.

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