www.sabado.ptFlash - 19 set. 09:00

Eduardo Lourenço

Eduardo Lourenço

O pensamento de Lourenço organiza-se em torno de duas ideias. A primeira não é verdadeira e a segunda não é original. O mestre de Vence tornou-se numa espécie de porta-voz do status quo e num senador das letras, investido das funções cardinalícias de administrador não executivo da Gulbenkian - Opinião , Sábado.

A melhor maneira de cair no amolecimento intelectual e de contribuir para cristalizar as ideias feitas e os lugares-comuns é deixar-se levar pelo entusiasmo acrítico e pela admiração sem reservas. Nos últimos anos, sempre que vem à baila a obra de Eduardo Lourenço, parece que toda a gente, tanto à direita como à esquerda, mergulhou numa panela de clorofórmio. Porque, em boa verdade, Eduardo Lourenço pode ser reivindicado por ambos os lados do espectro político. Tanto assim que o mestre de Vence se tornou, hoje, numa espécie de porta-voz do status quo e num senador das letras, investido das funções cardinalícias de administrador não executivo da Gulbenkian.

O pensamento de Lourenço organiza-se em torno de duas ideias. A primeira não é verdadeira e a segunda não é original. Senão vejamos. Para Lourenço, Portugal sofre de "hiperidentidade": por um lado porque tem excesso de passado ("Nenhuma barca europeia é mais carregada de passado do que a nossa. Talvez por ter sido a primeira a largar do cais europeu e a última a regressar"); por outro, porque esse passado tende a ser revestido com o verniz da utopia, da ilusão e da mania das grandezas. O facto de Portugal ser uma obsessão temática dos nossos intelectuais, pelo menos desde o século XIX, confere-nos o estatuto de caso excepcional: nenhum outro país gasta tantos neurónios a embonecar a sua identidade, nenhum outro país é tão autocentrado como Portugal.

A segunda ideia parte da seguinte constatação: Portugal é um País "ausente de si mesmo" e do seu "próprio ser". Assim se percebe, segundo o autor de O Labirinto da Saudade, "a nossa permanente passividade", "o nosso conformismo maciço", "a nossa essencial imobilidade", "o nosso irrealismo histórico e político", "o horror nacional à meditação que nos implica e nos põe em causa". A visão linear de Lourenço, quando tenta explicar este problema, torna-se evidente na constelação de termos que respondem à mesma banalidade psicanalítica: ilusão, auto-alienação, nevoeiro, opacidade, cegueira, irrealismo, inconsciência, miragem, sonambulismo, autismo, ocultação, jogo de avestruz, silêncio, máscara, sublimação, simulacro, etc.

Segundo Lourenço, todos esses traços do nosso carácter nacional tornaram-se particularmente evidentes durante o Estado Novo e no pós-25 de Abril. Durante o Estado Novo porque o regime se dedicou à tarefa de construir uma grande obra narrativa, assente na grandeza de Portugal e no mito do colonizador exemplar (isto é, não racista e menos violento do que o inglês ou francês), cuja função prioritária era atirar areia para os nossos olhos e afastar-nos da realidade política. Durante o PREC porque "um acontecimento tão espectacular como a derrocada de um 'império' de quinhentos anos, cuja 'posse' parecia co-essencial à nossa realidade histórica e mais ainda fazer parte da nossa imagem corporal, ética e metafísica de portugueses, acabou sem drama". Estranhamente, a liberdade de pensamento e a de expressão permitidas pela Revolução dos Cravos não deram origem, na opinião pública, a uma discussão frontal sobre a questão africana e a perda das colónias. Pelo contrário, o mesmo silêncio, a mesma indiferença, o mesmo desinteresse e a mesma passividade que marcaram os mais de 40 anos do salazarismo-marcelismo mantiveram-se como características fixas e inconfundíveis da existência nacional.

Tenho muitas dúvidas quanto a tudo isto. Em relação à primeira ideia, basta atravessar a fronteira e ler, por exemplo, a obra de Javier Varela (La novela de España. Los intelectuales y el problema español, 1999) para percebermos que os escritores e ensaístas espanhóis, de oitocentos para cá, sempre estiveram também obcecados, tantas vezes com recurso ao imaginário e ao mito, com a questão identitária espanhola.

Quanto à segunda ideia, parece-me um decalque do argumento central de Die Unfähigkeit zu trauern. Grundlagen kollektiven Verhaltens (A incapacidade de chorar. Fundamentos do comportamento colectivo), escrito em 1967 por Alexander e Margarete Mitscherlich. Na opinião de ambos, aquilo que caracterizou a sociedade alemã, após um desastre de tão grandes dimensões - a derrota na II Grande Guerra -, foi a incapacidade de pensamento crítico, a indiferença, o desinteresse, a apatia política, a ausência de curiosidade pelos motivos que converteram quase todos os alemães em partidários da ideologia ditatorial e racista do nacional-socialismo, de um regime que conduziria à maior catástrofe material e moral da História da Alemanha.

Depois de se terem deixado prender pelo sonho messiânico de grandeza de Hitler, depois de se terem deixado guiar pela ficção de uma raça privilegiada, predestinada para dominar os outros, os alemães renegaram o passado, não realizaram qualquer esforço para compreender os terríveis acontecimentos do final da II Grande Guerra: "Nós - enquanto colectividade - não nos compreendemos a nós mesmos nesse período da nossa história." Afinal, a guerra perdida entrava em crua contradição, e era impossível de conciliar, com o anterior auto-retrato idealizado da raça alemã. Isso terá imprimido um carácter teatral e fictício tanto à realidade política interna como à vida quotidiana dos alemães. Esse silêncio sobre o passado terá sido, para o casal Mitscherlich, um mecanismo de defesa por uma culpa de que os alemães tinham de responder colectivamente. Convenhamos: o mecanismo de defesa dos alemães contra o passado nazi não anda muito longe do mecanismo de defesa dos portugueses contra o colonialismo e a perda das colónias…

Como se vê, o confronto com outras explicações e tradições nacionais põe à mostra tanto a feição provinciana como o cunho de monólogo interior do pensamento de Eduardo Lourenço: por um lado, concentra-se demasiado na tradição literária nacional (e, à sua maneira, alimenta o mito do excepcionalismo luso), por outro lado, quase nunca se refere às obras de autores estrangeiros. Encerrado no seu projecto ambicioso e de longo alcance - encontrar a chave do "subconsciente nacional" e percorrer o labirinto da "consciência lusíada", para depois interpretar a essência ou a "alma total" da nação -, Eduardo Lourenço sempre escreveu sem mostrar qualquer interesse ou curiosidade pelo que possam pensar os seus colegas da academia (portuguesa e internacional).

Michael Polanyi foi um dos primeiros pensadores a chamar a atenção para a natureza social do conhecimento científico (ideia que foi depois popularizada através do célebre livro de Thomas Kuhn sobre as revoluções científicas). Exactamente o oposto do praticado por Eduardo Lourenço, cujo ensaísmo individualista parece nunca ter saído da fase infantil do pensamento.

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