visao.sapo.ptAntónio Lobo Antunes - 19 jul. 07:34

De onde menos se espera é que não sai nada de jeito

De onde menos se espera é que não sai nada de jeito

– Ó Saramago você devia fumar. Saramago, que não era escritor, era um pregador, respondeu-lhe – Mas o tabaco faz mal. E ela, implacável – Pois faz mas você assim escrevia menos.

Susa Monteiro

Ando às voltas com um livro que me está a dar cabo da cabeça e, ao dizer isto, estou a ser injusto para ele porque todos aqueles que fiz me deram cabo da cabeça. Qual a razão de escrever, nesse caso, uma vez que trabalho imenso tempo por dia, todos os dias? No liceu e na faculdade escrevia em lugar de estudar. Na tropa, aqui e em África, escrevia o mais que podia. Na volta da guerra idem aspas. Depois larguei a Medicina, que me roubava muitas horas, incitado pelo Zé Cardoso que achava que eu não devia fazer mais nada. Obrigado, Zé, por teres acreditado sempre tanto em mim, embora as nossas ideias acerca do ofício das palavras não fossem sempre coincidentes. Telefonava-me todos os dias, às dez da manhã. Quando anunciavam o Nobel telefonava também ao nosso comum editor, Nelson de Matos, e dizia-lhe, furioso

– Perdemos.

Quando acabou o seu livro De Profundis, Valsa Lenta, fui a casa dele, para o sítio onde trabalhava, e emendámos aquilo em conjunto. Não sei porquê a certa altura passei na sala onde estava a Edite e a Edite disse-me

– O Zé está todo contente porque gostaste do livro.

E era verdade

(nunca mentimos entre nós)

gostei mesmo. Éramos o melhor amigo um do outro, com a gente a lembrar-se de uma frase de Mário Soares

– Aos amigos nunca se mente. À Pide e às mulheres mente-se sempre

Mário Soares que às vezes saía com este tipo de boutades, numa daquelas gargalhadas silenciosas que ele tinha. Quando Fernando Namora e Vergílio Ferreira, escritores que não me interessam um pito, eram íntimos, mostravam os produtos um ao outro. E aquele a quem o produto era mostrado aconselhava

– Não mexas mais que já está bom

a fim de impedir o que mostrava de melhorar o material. De qualquer forma não melhorariam muito. A minha amiga Agustina, que tinha talento a dar com um pau, chamava-lhes os Irmãos Tanto Faz. Quando me mandava um livro seu havia sempre uma flor entre duas páginas. E punha alcunhas maravilhosas. Uma ocasião um poeta gabou-se diante da gente de ter passado uma noite a fazer amor: a Agustina passou a tratá-lo por Seven Up. Noutra ocasião declarou-me:

– Gosto tanto do meu marido que nos deviam chamar Casal Garcia.

Noutra ainda

– Se não tivesse casado com o Alberto casava contigo ou com o Camilo
o que não era verdade porque se ela não tivesse casado com o Alberto casava com o Alberto. Outra ocasião, para Saramago

– Ó Saramago você devia fumar

Saramago, que não era escritor, era um pregador, respondeu-lhe

– Mas o tabaco faz mal

e ela, implacável

– Pois faz mas você assim escrevia menos.

Conhecia-a, a ela a quem o meu querido Eduardo Lourenço chamava Rainha Vitória, da primeira vez que fui ao Norte assinar livros na Leitura. Agustina estava à porta, declarou-me

– Venho dar-lhe as boas vindas em nome do Porto

e assim começou a nossa história. Tempos depois telefonou-me

– Olha filho estou aqui no Estoril a presidir ao juri de um prémio literário. Tu não concorreste mas eu meti lá um livro teu porque aquilo tem um dinheiro simpático e não te dou o direito de me contrariares.

Não a contrariei, claro, eu podia lá contrariá-la, ela que era, com a fotógrafa Gisèle Freund, a mulher mais sedutora que conheci, e passámos o jantar 
do prémio a conversar. Eu adorava a sua coragem, a sua terna crueldade, a sua inteligência, o seu humor. Esta crónica, reparo agora, parece uma sopa de pedra, tem de tudo lá dentro. Como é que eu saio disto? Comecei por dizer que o livro com que ando agora me está a dar cabo da cabeça e depois deixei a esferográfica a passear sozinha para aqui e para ali. Só neste momento voltou a mim e consentiu que lhe pegasse de novo, agora que é altura de acabá-la. E é isso que vou fazer: acabá-la. Escrever pronto já está, e esquecer-me dela numa caligrafia mais caprichada. 
Olhem só: Pronto já está. E posso regressar em paz 
ao livro. Até para a semana, respeitável público.

(Crónica publicada na VISÃO 1323, de 12 de julho de 2018)

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