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Paisagem doméstica

Paisagem doméstica

Curvado outra vez sobre o computador, estendo-me em considerações várias, ricas de anotações políticas, históricas, sociológicas sobre as mulheres e as viúvas dos escritores portugueses, coisas solidamente arquitectadas que tento à força conter dentro dos limites razoáveis.

Estou em maré alta de inspiração. Corro para a mesa, sento-me na cadeira, ligo o computador com ímpeto e imediatamente me ponho a escrever o título: Mulheres da Literatura Portuguesa. Quando começo a alinhar a primeira frase, reparo nuns olhos de 3 anos fitando-me, investigando o que estou a fazer. É a minha filha. Quer ver desenhos animados, a legítima diversão, o natural recreio dela depois do jantar e antes de adormecer, altura em que lhe conto, às escuras, uma história inventada. Desenhos animados: um processo infalível quando se precisa de uns bons 45 minutos para trabalhar. Depois de atender ao pedido da fedelha, entrego-me de novo às leis da escrita. Sinto-me preparado mentalmente para um artigo com grande estilo e imaginação. Do meu lado esquerdo tenho cadernos cheios de notas para futuros textos. Às vezes olho para eles, outras paro para pensar. Sou arrancado à contemplação por um pedido desesperado: "Tenho fome! Quero comer alguma coisa!" No começo tenho sempre uma certa tolerância, pergunto-lhe o que é que lhe apetece. Pedincha-me uma bolachinha e um iogurte igual aos da escola.

Levanto-me. Vou da sala à cozinha e da cozinha à sala, trago duas bolachas Maria e o iogurte. Antes de conseguir voltar à nobre tarefa da escrita, que minutos antes de ser interrompido pela criança me absorvia por completo, pede-me para esclarecer algumas dúvidas sobre a Peppa, uma porquinha cor-de-rosa de 5 anos que gosta de saltar em poças de lama. Chove uma saraivada de perguntas sobre o Papá Pig, a Mamã Pig e o seu irmão de 2 anos, o (que é lá isso?!!) George Pig.
Quando estou prestes a sentar-me, tenta atrair-me novamente para a sua esfera e suplica que lhe ponha agora um episódio do Ruca, a série canadiana que conta a história de um menino de 4 anos que vive com a mãe, o pai, a irmã Rosita e o gato Riscas. Desfiro, interiormente, ataques terríveis ao Canal Panda. Começo a sentir-me inquieto quanto à possibilidade de escrever qualquer coisa digna de ser lida, lembro-me de uma frase reconfortante de Santiago Gamboa: "A escrita é um processo de perda: sonha-se com uma catedral e no final consegue-se uma igreja de província."

É então que se ouvem os dramáticos apuros do cocó, o socorro que as crianças carecem quando a fralda começa a incomodá-las. Permaneço imóvel no meu lugar. Interrogo, aflito, se é mesmo cocó. Peço-lhe para esperar, ter paciência. Solta um grito de se ouvir no fim da rua. Quem lhe terá ensinado aquilo? (Ainda agora não consigo perceber como é que aquele pingo de gente conseguiu vomitar dos pulmões tal quantidade de barulho.) Resmungo com falsa serenidade. Tento explicar-lhe que estou a meio de uma frase genial, uma frase que, no seu conjunto, poderia atingir as proporções das grandes obras-primas. Mas calar-se não havia meio. Quando desata a gritar daquela maneira, apetece-me sempre cobrir-lhe a boca com fita adesiva, mas digo para mim que pode ter um trauma. Nada a fazer. Deito corajosamente mãos à obra. Vou mudar-lhe a fralda e já venho. Limpo-lhe o rabinho. Coloco um creme-barreira, hidratante, para proteger a pele.

Cambaleando aturdido por aquele cheiro específico que impregnou o meu cérebro, imagino o quanto a Literatura Portuguesa deve às mulheres dos nossos escritores. Sento-me. Mas antes que pudesse recuperar da experiência anterior, entra em cena o aviso do computador, das actualizações, diz que vai ser reiniciado e que a operação pode demorar alguns minutos. Fico arrepiado, tremo todo. Perco a paciência. Digo mal da minha sorte. Tenho pena de mim. Encomendo-me ao diabo. Ameaço os deuses disponíveis. Sinto o impulso verbal de praguejar, mas tenho de me reprimir. A minha filha pede mais uma bolacha. Digo que não. Comer uma pançada de bolachas faz mal à barriga. Evangelizo-a contra os malefícios dos doces, explico-lhe que o açúcar, como explica o antropólogo cubano Fernando Ortiz, é o "filho favorito do capitalismo". Não achou graça. Considero um sinal de independência de espírito que a minha filha tenha conseguido absorver absolutamente nada do que lhe disse. Quando ela, muito empertigada, começa a roer o comando da televisão, levo a mão à cabeça, verifico se ainda conservo todo o cabelo. Eu a advertir, a criança a gritar novamente. Agitadíssimo, já de péssimo humor, aviso-a de que sofrerá o castigo que os seus crimes merecem: não poderá ser ela a acender o interruptor da luz da casa de banho quando formos lavar os dentes. Fica quieta de olhos baixos, muito reflexiva.

Sem saber já onde ia, tento com todas as minhas forças regressar à difícil arte de escrever. Percorro nervosamente a última frase, deixada a meio. Súbito, intromete-se o telemóvel, antes inanimado. Uma mensagem associa-se à estragação da minha escrita. Em seguida, umas coisas começam a mexer debaixo da mesa. Sinto crispar-se na minha perna uma mão pequena. Parece fazê-lo por desfeita, só por arrelia, por lhe ter recusado mais uma bolacha. Inopinadamente, começa a choramingar, de bochechas caídas. Desatinado, pergunto: mas o que se passa agora? Num gesto de impaciência contida, abeiro-me para lhe dar uma vista de olhos, aproximo-me para lhe acariciar a cabeça em forma de colmeia e tranquilizá-la. Com os olhos líquidos e o queixo triste, informa-me, com um som de voz que é o que há de mais doce, terno e luminoso, que fez um "dói-dói". Sinto-me invadido de amor por ela. Peço-lhe licença para observar a esfoladela e respondo-lhe risonhamente que é uma coisa mínima, digo que não é nada, que já passa. Ao fim de 10 segundos angustiosos, enquanto lhe passo novamente a mão pela cabeça e lhe limpo o nariz ranhoso, já se sente recuperada. Digo então que lhe dou a bolacha - sou um coração fraco - se ela prometer ficar sossegada a fazer desenhos numa folha de papel, esquecendo-me imperdoavelmente de que juntar canetas de feltro e crianças é como proporcionar o encontro de duas forças destruidoras.

Depois de atender a sua reclamação (e de lhe passar para as mãos as referidas armas de expressão artística), consigo um instante livre, que aproveito para desenvolver breves considerações sobre o papel preponderante das mulheres na vida de alguns dos nossos melhores poetas e romancistas. Durante algum tempo, talvez minutos, esqueço-me de mim, do mundo e da minha responsabilidade de pai. Mas eis que se intromete uma dúvida: que estranho, nada se ouve. Torço o pescoço para a direita, para ver se ela ainda se encontra na mesa a desenhar, olho em volta. A bagunceira desaparecera! Arrebito as orelhas. Oiço apenas o som da minha respiração, que parece não pertencer ao meu corpo. Há sempre que desconfiar da duração do silêncio total de uma criança. Se não produz barulho de cinco em cinco segundos, alguma coisa não está bem. Enquanto o diabo esfrega um olho, as calamidades acontecem. Na minha mente, como o negativo de uma fotografia que se perdeu, lembro-me bruscamente, indefinidamente, de um vulto a esgueirar-se para a outra ponta da casa, a dobrar o ângulo do corredor, antes de desaparecer do meu campo de visão.

Apreensivo, com um leve aperto no peito, pressentindo talvez alguma desgraça, precipito-me naquela direcção, enquanto chamo por ela. Está no quarto, inteira e tranquila. Calça os sapatos do papá e veste, sorridente, a saia de bailarina. Encontra-se no meio dos seus destroços, um mundo de pequenos objectos de origens desconhecidas espalhados por todos os lados, bonecada sem pernas, peças da Lego, carrinhos, papéis rasgados em tiras, brinquedos prostrados em cima da cama toda desfeita, como uma manada de elefantes adormecidos no matagal. Acompanha-me com os olhos, parece dizer, paralisada na sua expressão: estou aqui. Acto contínuo, começa a executar um número burlesco, a dar pulinhos, fazendo-se desentendida, tirando grande vaidade da cara e dos braços riscados a canetas de feltro. Após o que pede colo, decerto cheia de sono. Chama-me para junto de si, distribuindo amor e ternura com um olhar tão meigo, tão lindo, tão simples, tão escarrapachado em mim. Enquanto a levo ao colo e a beijo sussurrando palavras de afecto, penso na dureza da vida daquelas mulheres que exerceram simultaneamente de esposas, de mães, de criadas e de secretárias dos nossos escritores (muito longe pode ir esta discussão, tão longe que talvez a continue na próxima semana).

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