www.dn.ptMaria Rocha - 23 mai. 01:00

Opinião - Os TSDT à espera de Godot

Opinião - Os TSDT à espera de Godot

Samuel Beckett (1906-1989) publicou em 1952 a famosa obra do teatro do absurdo, À Espera de Godot, que não resisto em associar à luta dos TSDT (técnicos superiores das áreas de diagnóstico e terapêutica). Uma obra-prima do pós-guerra em que os personagens estão retidos sem possibilidade de escolha e a ação do texto é o acto de esperar.

Samuel Beckett (1906-1989) publicou em 1952 a famosa obra do teatro do absurdo, À Espera de Godot, que não resisto em associar à luta dos TSDT (técnicos superiores das áreas de diagnóstico e terapêutica). Uma obra-prima do pós-guerra em que os personagens est��o retidos sem possibilidade de escolha e a ação do texto é o acto de esperar.

Como na peça de Beckett, aqui os dois personagens representados pelo mais pequeno grupo de profissionais do SNS, os TSDT, esperam Godot. Envolvidos em negociações e diálogos absurdos, entre reuniões engenhosas da parte da tutela, constantemente adiadas, ora por falta de estudos ora por falta de resposta, umas vezes do ministério da saúde outras do ministério das Finanças, obrigando a um vai vem dos representantes dos sindicatos, mostrando um enorme desrespeito por quem estava na mesa de negociações a representar os trabalhadores, pedindo variados estudos obrigando a ginástica imensa e encurtando prazos que eram, seguidamente, adiados. Tudo num processo surreal deixando um grupo à espera. Quando de repente se fecham negociações sem acordos firmados, e como em Beckett, Centeno substitui-se à criança que anuncia que Godot não vem, quando declara o fecho das negociações numa comissão parlamentar, engando-se na designação profissional e antes de comunicar aos sindicatos.

Para mim, nada mais faz sentido em mesas de negociação com um governo que se esconde numa ideia de geringonça mas que tem ações absurdas e totalmente contrárias ao espírito que está na sua base de sustentação. Que se esconde atrás de acordos que cumpriu - reposição de algumas verbas, e que a partir daí lava as mãos como Pilatos, ao mesmo tempo que vai perdendo a sua representatividade junto da sua base de apoio, que, coerentemente, dele se distancia. Um governo que deita fora quem o sustentou e que vai deixando cair a máscara, protelando negociações em diálogos absurdos, deixando todos os grupos profissionais do SNS aos gritos, e contribuindo, já descaradamente, para aniquilar o Serviço Nacional de Saúde com uma total falta de recursos humanos, técnicos, de consumíveis e instrumentais. A sobrevivência do SNS, que por este andar reduzir-se-á a médicos e enfermeiros, a camas e hotelaria, entregando, a privados, o que resta. O ministro tem um discurso do aumento do números de efetivos, médicos e enfermeiros, não colocando nessa equação os TSDT, e que me atrevo a apelidar de desvairado, absurdo e incrédulo para quem, dia após dia, vive o SNS. Vive-se, no caso dos TSDT, um dia a dia sufocados em listas de espera, uma eficaz desorganização organizada, entre ordens e contra ordens, por equipamentos que estão presos por adesivo, fazendo lembrar os velhos anos 70 e 80 do século passado, em que se dizia se não existisse adesivo os hospitais caiam. Quem ouve o ministro e vive o SNS sente-se num cenário legítimo do teatro do absurdo.

Entre o aristocrata e o escravo de Beckett, entre os negociadores dos ministérios e os trabalhadores, o que existe é que o primeiro exige licenciaturas, exige, sem em nada contribuir, exímios executantes (com custos elevadíssimos para os segundos) fazendo crer que existirá uma recompensa deixando 18 anos um grupo à espera de Godot. O grupo acreditou que o tempo lhes daria razão, investiu na sua própria formação, fez mestres e doutores. Super especializou-se.

Leio esta luta como Beckett, com a diferença de que no fim do primeiro ato não aparece nenhuma criança a dizer que Godot não virá amanhã, nem no fim do segundo ato a dizer que Godot nunca virá. Nesta luta, atrevo-me a falar em nome de todos, existem oito mil almas que se sentem genuinamente injustiçadas, oito mil criaturas que sabem que estão cheias de razão. Oito mil peças de um sistema que em parte depende muito delas e que estão a ser preteridas por agendas ocultas de privatização de uma parte muito apetecível do SNS.

Ao contrário da peça de Beckett onde se percebe uma certa apatia da população pós-grande guerra, neste caso, também estou cansada, exaurida (a história da minha classe profissional tem sido uma luta dura), sobretudo abatida porque acreditei que era desta vez, acreditei numa certa felicidade porque o meu trabalho seria reconhecido, porém não esperarei mais. O governo não representa os interesses do SNS, representa outros interesses levando este sistema ao esvaziamento dos seus principais ativos. Senhores governantes, não ficarei, como muitos dos meus não ficaram, à espera de Godot, mesmo que conscientes de que esta espera, este tempo/espaço, possa ser já inútil.

Pelos ministros diretamente envolvidos não posso fingir respeito porque me sinto tratada sem o mínimo de consideração, porque me senti exposta a uma violência durante as negociações sem par. Quem está no topo da cadeia das decisões deve ser idóneo e jogar limpo. Exijo respeito, exijo abertura de negociações já e maior esforço do governo em tentar aproximar-se dos sindicatos. É vergonhoso aquilo que propõem.

Técnica superiora das áreas de diagnóstico e terapêutica

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