expresso.sapo.ptexpresso.sapo.pt - 19 mar. 18:00

Garry Kasparov ao Expresso: “Putin promoveu a participação eleitoral como um produtor da Broadway promove o seu espetáculo”

Garry Kasparov ao Expresso: “Putin promoveu a participação eleitoral como um produtor da Broadway promove o seu espetáculo”

Lenda do xadrez transformada em ativista político, Garry Kasparov faz para o Expresso a análise da vitória de Vladimir Putin para um quarto mandato como presidente da Rússia. Fala em vitória e não em eleição, porque o que se passou “foi um espetáculo, um teatro a fingir que há democracia”. Explica porque é que o momento global e a era Trump tiveram influência no resultado. E denuncia as fraudes que terão levado a uma alta taxa de participação e votação: “Após 18 anos de poder absoluto, Putin tem de ser venerado, num culto de personalidade, ou as pessoas começarão a questionar o porquê de o país estar naquele estado”

Há dois tipos de xadrez diferentes na vida de Garry Kasparov. O primeiro, aquele jogo de tabuleiro com peças brancas e pretas em que se sagrou campeão mundial quando tinha apenas 22 anos, levou a que o seu nome fosse conhecido um pouco por toda a parte. Mas é segundo, o xadrez político, que tem levado a sua voz aos telejornais internacionais (ou a conferências como a mais recente edição da Web Summit, em Lisboa), uma vez que Kasparov se tornou um dos mais destacados críticos de Putin e é atualmente ativista e diretor da Human Rights Foundation.

A vitória de Putin nunca esteve em dúvida: dias antes da eleição, especulava-se apenas sobre a percentagem que obteria numa corrida desigual, em que os seus adversários conseguiam não mais do que percentagens residuais nas intenções de voto, e a taxa de afluência, que funcionava como uma espécie de medida ao apoio popular do regime. É que, conforme explica Kasparov ao Expresso, “após 18 anos de poder absoluto, Putin tem de ser venerado, num culto de personalidade, ou as pessoas começarão a questionar o porquê de o país estar naquele estado”.

Em comentários enviados por escrito, um dia depois de o Presidente russo ter sido reeleito para um quarto mandato à frente dos destinos do país, Kasparov – que nasceu no Azerbeijão e se naturalizou russo e croata mais tarde – recusa falar de uma “eleição” propriamente dita. “Apesar de Putin ser claramente o vencedor, não houve nenhuma eleição. Foi um espetáculo, um teatro a fingir que há democracia”, assegura.

“As pessoas expõem as fraudes quase por desporto. Percebem que não mudará nada”

Uma das provas do “espetáculo” que o ativista político refere serão as fraudes que foram este domingo, dia de eleições, denunciadas – só a Golos, organização não-governamental que tem por objetivo a proteção do direito ao voto, dizia esta segunda-feira ter detetado 2929 casos de irregularidades, sobretudo de votos duplicados, pessoas que votaram por vários familiares ou que foram subornadas com presentes e cupões de desconto para irem votar.

Vários destes casos – por exemplo, o de uma mulher que colocou balões coloridos que estavam supostamente nas mesas de voto para oferecer aos eleitores mesmo diante das câmaras de vigilância dispostas pela sala - foram gravados e divulgados nas redes sociais ou em sites como o da Golos. Mas, para Kasparov, as fraudes – que segundo a lei russa podem ser penalizadas com multas entre os 2 mil e os 7 mil euros ou penas de prisão até quatro anos – não terão consequências. “As pessoas expõem nesta altura as fraudes quase por desporto. Toda a gente percebe que não mudará nada, mas expor estes bandidos, especialmente os locais, dá-lhes uma espécie de sentido de dissidência. É preciso lembrar que não é só Putin que importa [desmascarar], mas os agentes oficiais até ao mais baixo nível. Eles devem ser desmascarados e lembrados”.

“Deixar que Putin tivesse 76% mostra que já não se incomodam em esconder a farsa”

Perguntamos a Kasparov qual ser�� então o objetivo de levar pessoas em autocarros a votar ou de colocar molhos de boletins de voto dentro das urnas, se a vitória de Putin já estaria, em tese, garantida, sem oposição que se visse (até porque uma das principais caras da oposição, Alexei Navalny, se viu impedido de concorrer por ordem judicial). “Nada do que aconteceu no domingo poderia mudar a estrutura de poder de forma nenhuma. O regime de Putin estava ansioso para promover a participação, da mesma forma que qualquer produtor de teatro da Broadway quer ter muita gente a assistir ao seu espetáculo”, responde.

“O resultado não teve significado, mas uma participação muito baixa seria um pouco embaraçosa. Por isso subornaram e extorquiram pessoas para que assistissem ao espetáculo, e mentiram sobre os números na mesma”, prossegue o ativista, que recentemente publicou o livro de análise política “O inimigo que vem do frio”, onde compara o regime de Putin a uma máfia com recurso às figuras do xadrez.

Uma única surpresa

Para Kasparov, houve uma única surpresa na noite em que Putin se viu reconfirmado como Presidente com 76% dos votos, um recorde pessoal. “Estou um pouco surpreendido por terem deixado que a percentagem final de Putin fosse tão alta. No passado, tinham mais contenção para preservar a imagem falsa de haver uma competição. Este ano, acrescentaram mais oposição falsa para tentar trazer mais eleitores às urnas. Mas deixar que Putin tivesse 76% em vez dos habituais 65% mostra que já não se incomodam em esconder”.

Porque terá, segundo Kasparov, deixado de interessar mascarar essa farsa? O campeão de xadrez encontra uma razão - e mete Trump ao barulho. “O autoritarismo está a crescer globalmente. É mais bem aceite, normalizado, até elogiado pelo Presidente dos Estados Unidos. Por isso, para quê escondê-lo? Porque não ir até aos 80%, 90% ou 99%, que ditadores como Kadafi conseguiam? Que preço é que Putin teria de pagar? ”.

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