expresso.sapo.ptexpresso.sapo.pt - 18 fev. 23:00

Lutar contra os seus demónios

Lutar contra os seus demónios

Três longas-metragens exigentes — “A Árvore”, de André Gil Mata, “Our Madness”, de João Viana, e “Mariphasa”, de Sandro Aguilar — a que se juntam três curtas, a concurso pelo Urso de Ouro — a representação portuguesa deste ano na Berlinale é de alto nível

Não há nos filmes que este ano representam Portugal no Festival de Berlim uma afinidade clara, há apenas, admita-se, um estado de pesar que paira sobre os seres e as coisas e que se manifesta de formas bem diferentes, em três filmes que, também eles, não poderiam ser mais diferentes uns dos outros. Um deles passa-se na fronteira bósnio-croata, amaldiçoado pelo tempo. Outro percorre Moçambique, de Maputo até Inhambane, assombrado pela história. Outro ainda surge cercado pela claustrofobia de desterros industriais da Grande Lisboa e tem nome de uma planta mítica no Tibete de que se diz possuir feitiços lunares. Passam os três na secção Fórum, foram feitos por realizadores próximos a nível geracional (Viana é de 1966, Aguilar de 1974, Gil Mata de 1978). E talvez não seja coincidência o manto de solidão que os atravessa, relacionado com a história e com a política, com famílias destroçadas, lutos insondáveis. São narrativas magoadas, dirigidas aos grandes problemas do Homem, aos temas universais da filosofia. Um feliz acaso junta-os agora em Berlim.

“A ÁRVORE”

Seguimos Gil Mata desde as curtas que precederam “Cativeiro”, primeira longa-metragem, de 2012. O cineasta aterrou em Sarajevo em fevereiro do ano seguinte, para complementar estudos numa residência. Entrou em contacto com a Film Factory School, dinamizada pelo húngaro Béla Tarr. E foi na capital bósnia que há dois anos rodou “How I Fell in Love With Eva Ras”, filme de fantasmas trespassado pela memória do cinema jugoslavo e de uma das suas maiores estrelas, a Eva Ras do título. Sem lastro de documentário desta vez, sem qualquer âncora que nos diga onde estamos, “A Árvore”, feito com não-atores, é o seu filme mais ambicioso. Uma criança olha para uma janela em tempos de conflito armado, abraça-se à mãe, e no mesmo plano, a partir de um travelling para trás, a câmara vai descobrir um velho que foi a criança que vimos, no mesmo quarto, já degradado pelos anos, agora noutro conflito. A II Guerra Mundial (ouve-se um pelotão a falar alemão), a Guerra dos Balcãs. Aquele velho, que depois parte com uma vara de garrafas vazias à procura de água e em posição crística, parece carregar todas as crueldades da história, ao longo de um rio, até chegar à árvore do título (anunciada em epígrafe com uma citação de “As Árvores”, conto de Kafka). Os planos são bastante longos, a exigirem fazer das tripas coração ao diretor de fotografia João Ribeiro (notável o seu trabalho). “Foi um filme que jamais me teria passado pela cabeça se eu não tivesse vivido na Bósnia e que vem de lá, das minhas caminhadas na neve, de uma estranha calma que aquele país me deu”, contou-nos Gil Mata. “E, contudo, os edifícios ainda estão cravados de balas. Interroguei-me sobre a guerra, sobre aquela sensação de cerco. Há uma opressão que sinto ali e que nunca me deixou, que ainda não passou para eles, e foi por isso que tive de fazer este filme, para me pacificar comigo próprio. A guerra dos anos 90, quanto mais a procuramos entender, menos a entendemos... E é dessa incompreensão que surgiram as ideias: um miúdo à procura da mãe que perdeu; um velho que atravessa duas guerras na mesma cidade e que a enfrenta com a austeridade da natureza à sua volta.” “A Árvore” é um filme de rituais, um cerimonial fora de moda do cinema atual e que nasce da sua durée, de casas pilhadas, de árvores cortadas e da fusão dos tempos que convoca. E é a infância que está em jogo (por mais do que uma vez nos lembrámos da obra-prima de Laughton, “The Night of the Hunter”) naquele diálogo final (e num filme em que eles são escassos), quando o velho diz finalmente à criança que “gostava de ter a tua coragem infantil para me perder”. Esta é a via-sacra de um velho que, à sua maneira, é também um crucificado. Talvez ele procure uma regeneração e — porque não — a sua juventude.

Isabel Abreu e António Júlio Duarte em “Mariphasa”, de Sandro Aguilar

Isabel Abreu e António Júlio Duarte em “Mariphasa”, de Sandro Aguilar

“MARIPHASA”

Já aqui deixámos admiração pela nova longa-metragem de Sandro Aguilar, na altura da sua estreia em Vila do Conde, em julho do ano passado. O início do filme foi remontado entretanto, e Berlim lança-o agora para um percurso internacional merecido. A compressão a que Aguilar sujeita as suas narrativas, retirando delas camada sob camada, deixa-nos presos a um fio condutor mínimo que também nos convida a procurarmos o mistério que envolve as personagens. Perdeu Paulo (António Júlio Duarte) uma filha num acidente de carro em que ele foi certamente o responsável? Não é o desterro industrial em que trabalha, filmado nos escombros da Lisnave, uma paisagem do seu próprio interior? O que o liga a Luísa (Isabel Abreu), a mulher com quem vive, mãe de um rapaz, e o que quer daquela Filipe (Albano Jerónimo), o vizinho de cima que a deseja, naquele prédio sombrio com laços familiares perdidos? Há todo um grau de destruição a impedir que as personagens mantenham uma hipótese de relacionamento, e “Mariphasa” testa-os pela sua matéria, pela escassez de luz, pela composição abissal dos enquadramentos, numa atmosfera de tensão.

Ernania Rainha e Hanic Corio em “Our Madness”, de João Viana

Ernania Rainha e Hanic Corio em “Our Madness”, de João Viana

“OUR MADNESS”

No novo filme de João Viana descemos de hemisfério e apanhamos o filão deixado pela sua longa-metragem anterior, realizada há cinco anos na Guiné-Bissau, “A Batalha de Tabatô”. Este cineasta, africano de nascimento (de Angola), leva-nos agora para Moçambique. Estamos no hospital psiquiátrico de Infulene. Ali conhecemos Ernania, uma paciente, jovem mulher, já traumatizada pelo passado. Uma porta aberta permite-lhe uma fuga. Ernania procura o seu filho, o marido que também perdeu (por isso enlouqueceu ela?), estamos na Maputo de hoje, isso é claro, e no entanto há aqui aviões figurados em camas de hospital que tentam descolar, muros altos que são os da história do colonialismo português e um argumento em que os diálogos, permeáveis à poesia, são com frequência enigmas, com elipses poderosas na estrutura, foras de campo em que se passam coisas inexplicáveis — “e tudo isso faz muito parte de África, a loucura — que é um tema caro para mim —, a morte que nos rodeia por todos os lados, e ao mesmo tempo um hino à vida, que passa muito pelas mulheres”, contou-nos Viana em Lisboa. O cineasta percorreu Moçambique de sul a norte. “Estava a viajar sozinho, num autocarro, já tinha passado Inhambane. O condutor aconselhou-me a ir para trás, questão de segurança... Digamos que a fronteira entre a lucidez e a loucura é fácil de ultrapassar ali. Era o único branco no autocarro, já na escola em Angola o era, estou habituado... Mas esta história perturbou-me, fez-me pensar na origem da violência, nesta África eternamente ensanguentada. África é preta e vermelha, os homens fazem a caça, as mulheres a civilização. O filme nasce de tudo isto, daquela viagem em que eu já procurava um filme sem saber que filme iria fazer.” O que nos espera em “Our Madness”? Uma ficção, como já se sugeriu, rarefeita, em que, também aqui, partimos com Erminia, prisioneira do seu trauma, rumo a norte, para a evocação de outros tempos, para torturas de hoje que são as mesmas de ontem (há uma altura em que o filme se refere aos massacres de Alabama, Guernica, Auschwitz, continuando a ‘linhagem’ por Batepá, Moncada, Shaperville...). Ritualização da história. Ritualização da morte. “Our Madness” é um filme em que a realidade começa a entrelaçar-se na sua própria maldição. E é um triunfo para João Viana, que expressa as obsessões já lançadas em “A Batalha de Tabatô” com um poder de síntese e uma capacidade de sugestão muito superiores às daquele.

As curtas portuguesas a concurso: “Onde o Verão Vai (Episódios da Juventude)”, de David Pinheiro Vicente, “Madness”, de João Viana, e “Russa”, de João Salaviza e Ricardo Alves Jr.

As curtas portuguesas a concurso: “Onde o Verão Vai (Episódios da Juventude)”, de David Pinheiro Vicente, “Madness”, de João Viana, e “Russa”, de João Salaviza e Ricardo Alves Jr.

TRÊS CURTAS

Tal como acontecera com “A Batalha de Tabatô”, também “Our Madness” tem uma curta-metragem feita a partir de partes remontadas da longa e que a ‘complementa’. João Viana chamou-lhe “Madness”, apenas. Essa curta, de 13 minutos, compete pelo Urso de Ouro da categoria. É nesta secção que encontramos ainda “Onde o Verão Vai (Episódios da Juventude)”, segunda curta de David Pinheiro Vicente, ex-aluno e atualmente a fazer mestrado na Escola de Cinema. É um conto de veraneio com a juventude do título, história de corpos que se provocam, que se aproximam, deixou bons indícios. E há também “Russa”, nova curta de João Salaviza, correalizada com o brasileiro Ricardo Alves Jr. Com uma dignidade a toda a prova, segue Helena (“Russa” é alcunha) e o regresso dela em saída precária, anos depois de ter estado presa, ao seu Bairro do Aleixo, no Porto (no qual viveu desde os 12 anos), entretanto parcialmente destruído. É curioso notar no percurso de Salaviza que “Russa”, nos seus planos encenados, procura documentar aquilo que há quase dez anos “Arena” ficcionou (numa zona de Lisboa): a memória coletiva de um bairro, as vidas dos que dele dependem. Mas este é um filme muito mais cruel e pessimista. Toca num caso político e na ameaça da especulação imobiliária. Um retrato português, espelho do país e do nosso tempo.

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