www.cmjornal.ptVictor Bandarra - 17 dez. 00:30

Uma doença comum

Uma doença comum

Susana finge não reparar nas meninas sorridentes que lhe estendem um saco do Banco Alimentar Contra a Fome à entrada do supermercado.

É uma mulher dos seus 40 e tal anos, muito estragados pela vida. Vida de mulher-a-dias e outros biscates, numa lufa-lufa de percalços e sobrevivência. Mãe sozinha, tem um filho hiperactivo com 10 anos. Nascida num bairro popular lisboeta, ainda trauteia o seu fadinho castiço, mas é o fado do dia-a-dia que a leva a momentos de tristeza e raiva. Susana mira cuidadosamente o preço das conservas - salsichas e atum. Depois, avança para o feijão e o arroz, dos mais baratinhos. Finalmente, detém-se a apreciar os morangos. Estão caros, o tempo deles já passou, é quase Natal. Com delicadeza, escolhe meia dúzia dos pequenos frutos - exactamente seis. E assusta-se quando um velho de fato e gravata lhe sussurra ao ouvido. "Então, Susana?! Uns moranguinhos para o miúdo?!" É um vizinho do bairro, reformado da estiva em Alcântara. Conhece-a desde quando era garota. Susana sorri, envergonhada. "Ele gosta muito de morangos!"

Susana e o filho não sofrem de nenhuma doença raríssima, ou sequer rara. Sofrem de uma doença (ainda) comum em Portugal: pobreza com laivos de fome. O autismo e a hiperactividade do filho são tratados com Ritalina e outros calmantes, que deixam o rapaz meio apatetado. É o que a médica de família pode receitar. Susana pesa o saquinho com os morangos. Faz seguramente contas de cabeça. Ao lado, há outras mulheres, nataliciamente caridosas, a meter conservas e massas nos sacos do Banco Alimentar. Susana desliza para a montra das carnes e conclui as compras com uns bifinhos de peru.

Os números dos anos de crise são dramáticos. Em 2015, ainda havia 3 milhões de pobres em Portugal. (Segundo o critério europeu, é pobre quem viver numa família cujo rendimento por adulto seja inferior a 60% do valor médio calculado para toda a população). Pior era o número de crianças que, segundo a UNICEF, passavam períodos de fome: 120 mil. Ziguezagueando por entre a caridade e a caridadezinha, a solidariedade e a justiça social, as coisas e as estatísticas melhoraram ligeiramente em 2016. Susana está na fila para pagar. Baixa a cabeça quando, contas feitas, as meninas do Banco Alimentar lhe lançam olhar inquisidor. E vem-lhe um brilhozinho aos olhos quando o velho estivador lhe deposita no saco um bem composto lote de morangos. "É pró teu rapaz!"

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