www.dn.ptMaria de Lurdes Rodrigues - 18 out. 01:00

Caso Contrário - Entre a emoção e a racionalidade

Caso Contrário - Entre a emoção e a racionalidade

1. O espaço público está tomado pela emoção. A emoção do desgosto e do pesar pela tragédia. A emoção da revolta pela incapacidade de a evitar e de minimizar os seus efeitos. E a descrença na nossa capacidade coletiva e na capacidade das instituições para garantir a segurança. Crescem as dúvidas sobre a possibilidade de virmos a enfrentar e a resolver o problema recorrente dos incêndios florestais no país.

Entre a consternação, a incredulidade, o medo e a revolta, muitos portugueses reagem à repetição da catástrofe. Uns pedem a responsabilização política da ministra, apelando à sua demissão, outros afirmam que o Estado falhou e que se quebraram os laços de confiança que o ligam aos cidadãos, outros ainda revelam desagrado com a comunicação política, o que tem sido dito ou não dito pelos membros do governo. Neste quadro, dominado pela emoção, corremos sérios riscos de perder, ou mesmo de deitar fora, a única ocorrência positiva nos tempos desta desgraça. Estou a falar do relatório de análise e apuramento dos factos relativos aos incêndios de Pedrógão Grande. Repito. Foi talvez um dos poucos factos positivos deste verão.

2. Positivo por várias razões. Em primeiro lugar, as razões políticas. Na Assembleia da República, os diferentes grupos parlamentares entenderam-se para criar um grupo de trabalho constituído por peritos altamente qualificados para o apuramento e análise dos factos ocorridos em Pedrógão. A escolha foi da responsabilidade dos grupos parlamentares. Muitas dúvidas foram então levantadas acerca da independência de peritos indicados por partidos políticos. Contudo, as escolhas revelaram-se acertadas, assim se demonstrando ser possível os partidos políticos colocarem o interesse do conhecimento sobre o que se passou em Pedrógão à frente dos interesses político-partidários imediatos. Foi possível colocarem de lado o que os separa e colaborarem no esclarecimento de uma questão de interesse comum.

Em segundo lugar, razões associadas à qualidade do trabalho realizado. O grupo de peritos trabalhou com total liberdade, descrição e abertura, abordando o problema dos incêndios na sua complexidade, mobilizando conhecimento pluridisciplinar e resistindo à tentação da simplificação e do trabalho apressado. Produziu um relatório com o objetivo de apurar e analisar os factos relativos aos incêndios de Pedrógão. E, na análise dos factos, procurou, no relatório, identificar o que houve de particular naquele dia, isto é, o que ocorreu de extraordinário e circunstancial. Mas também analisou os factos decorrentes do modo como a prevenção e o combate aos fogos florestais estão organizados no nosso país. Ficámos a saber mais sobre Pedrógão, mas ficámos também a saber mais sobre o problema da prevenção e do combate aos fogos, em geral. Ficámos com mais conhecimento sobre como está organizada a prevenção e o combate aos fogos, como funcionam as instituições e os organismos que criámos, como são formados os profissionais, de que recursos financeiros e outros dispomos, quais são os bloqueios e as dificuldades do sistema montado. Nenhum aspeto do problema dos incêndios florestais, mesmo os mais delicados, ficou por abordar.

Dirão alguns que não há muito de novo no relatório. Que contém sobretudo o que já sabíamos. Não é verdade. Contém uma análise factual e rigorosa do que se passou em Pedrógão. E reúne de forma sistemática e exaustiva o nosso conhecimento disperso sobre o tema dos incêndios florestais. Isto leva-me à terceira razão positiva. Trata-se de um relatório que não se limita a apresentar informação e conhecimento. É um relatório consequente que apresenta propostas de solução. Globalmente, podemos considerar que é um documento corajoso na análise e corajoso nas recomendações de ação e de decisão. O governo precisa de ser corajoso na concretização dessas recomendações.

3. Como referi, o debate público está ao rubro. As visões catastrofistas e derrotistas prevalecem. Precisamos de mais racionalidade e precisamos de não perder de vista a necessidade de resolução do problema dos fogos florestais. O relatório procura demonstrar que é possível trilhar um caminho. Que há soluções ao nosso alcance. Há medidas a tomar que terão efeitos apenas no longo prazo, mas há muitas outras que podem ter impactos mais rápidos. Uma reforma profunda e de efeitos lentos, como é a reforma das floresta, pode ser acelerada se se alinhar a ação de curto prazo com os objetivos mais distantes.

Penso que é desejável, nesta nova fase, o governo manter o envolvimento da Assembleia da República e dos grupos parlamentares. Se foi possível um entendimento para a criação do grupo de trabalho e a escolha dos peritos, também deve ser possível continuar a negociar a melhor forma de concretizar as propostas que estão agora em cima da mesa. Seríamos uns monstros se não estivéssemos emocionados com a amplitude da tragédia. Mas seremos irresponsáveis se deixarmos que as emoções sufoquem toda a racionalidade e nos impeçam de ver a porta aberta pelo relatório sobre os fogos do grupo de trabalho criado pelo Parlamento.

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