www.dn.ptAna Sousa Dias - 24 jun. 01:03

O Fator Humano - E todos deixaram passar a ambulância

O Fator Humano - E todos deixaram passar a ambulância

O trânsito estava cerrado, a avançar lentamente pelo túnel, ontem. A sirene de uma ambulância agitou a tarde quente, e lá estava ela uns bons 50 metros atrás. Não vai conseguir passar, não há espaço para nos afastarmos, pensei. Em poucos instantes, a ambulância aflita passou, como se o espaço se tivesse multiplicado milagrosamente. E eu: agora há de haver uns espertos que vão aproveitar o rasto vazio que ela deixa.

Não tinha acontecido isso mesmo no domingo, logo de manhã? Tinha acabado de ser anunciado que o número de vítimas mortais dos incêndios era 58 - e percebia-se que ia continuar a aumentar - e já havia especialistas sôfregos a debitar sobre fogos, ordenamento florestal, contrafogos, desertificação, como aqueles que sabiam virar o Tollan em 1980: "se fosse eu..." Estava toda a gente em choque, a pensar como foi possível, será engano?, e já havia tudólogos e achistas em ação desenfreada. Se calhar a estes seres cheios de sapiência o choque dá-lhes para não conseguir parar de teorizar, enquanto às pessoas não excecionais dá-nos para ficarmos tristes, aflitas, preocupadas, consternadas, agarradas às imagens e às notícias a desejar ouvir a frase "o fogo está dominado".

Fiquei irritada com uma voz em particular que ia dizendo "eu estudo isto há muito tempo", enquanto eu pensava que essa mesma pessoa estuda imensas coisas há muito tempo porque já a ouvi opinar sobre os temas mais díspares e sempre com esse tom de quem já estuda isto há muito tempo e sabe mais do que nós todos. Irritei-me, pronto, estava paralisada perante o horror. No computador, via passar imagens e notícias e tentava distrair-me em solitários de cartas.

Na véspera, estava entre as "pequenas coisas" da exposição de Júlio Pomar e Pedro Cabrita Reis, no ateliê-museu do primeiro, a ouvir fado cantado por Aldina Duarte. Uma noite inesquecível, com Aldina a arriscar mais do que é habitual. Foi aí que vi os primeiros alertas sobre o fogo, a brilhar no telemóvel silencioso.

21.22: Incêndios. Um bombeiro desaparecido e vários feridos em Pedrógão Grande.

21.57. Pedrógão Grande com aldeias cercadas, sem eletricidade, e falta de bombeiros no combate às chamas.

23.43 Dezanove mortos no incêndio de Pedrógão Grande, confirma o secretário de Estado.

O rádio do carro era menos lacónico, trazia mais nomes de terras. Um deles fez-me parar e pegar no telefone. Uma, duas, três, quatro tentativas e a confirmação de que um dos meus irmãos estava lá. Sai daí, dizia eu como se o facto de ter mais uns anos do que ele me desse alguma autoridade, como se ele não fosse sensato. Sai daí, enquanto ele regava a terra e o telhado da casa e avaliava o momento de chamar os bombeiros.

Salvaram-se todas as pessoas e casas daquele vale habitualmente paradisíaco, mas foram longas horas de combate, com o apoio dos bombeiros e muito esforço. De repente o vento mudava, as chamas reapareciam e todos os que ali têm casas estavam juntos, ajudavam-se. Agora já passou e em volta está tudo negro, e o que importa é que há tanta gente ali da zona que perdeu tudo. É essa a tragédia que vai demorar muito a cicatrizar.

Mas no domingo ainda não sabia qual ia ser o desfecho e queria respeito por quem estava em sofrimento. Queria não ter de ver as atitudes disparatadas de gente em bicos dos pés, queria ouvir o que os jornalistas tinham para contar, queria que nos mostrassem o que as pessoas no terreno estavam a dizer. No Facebook, aproveitei para me desfazer de opinadores compulsivos e de peticionistas irracionais.

Agora sim, agora quero saber por que a floresta ardeu, como tantas perdas podiam ter sido evitadas, quero que sejam analisados e explicados os erros, que as responsabilidades sejam apuradas. Quero que as pessoas que sabem a teoria e a prática façam o que é preciso fazer. É demasiado tarde para demasiada gente, mas agora é o dia seguinte, o dia em que a vida continua.

No túnel, misteriosamente, a ambulância passou e nenhum carro se precipitou para lhe seguir o rasto. Não houve sofreguidão, oportunismo, chico-espertices. Talvez porque nestes dias a vida e a morte nos passaram pela frente dos olhos e nada parece mais importante do que uma ambulância cheia de pressa.

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