publico.pt - 1 mai. 22:22
Humberto Adami: “Portugal tem de pedir desculpas a todos os cidadãos negros”
Humberto Adami: “Portugal tem de pedir desculpas a todos os cidadãos negros”
Vice-presidente da Comissão da Verdade da Escravidão Negra diz que repercussões da escravidão se sentem até hoje no Brasil: “Chegará a hora em que Portugal terá que partir para esse acerto de contas.”
Humberto Adami é um advogado com longa experiência na área dos direitos das relações étnico-raciais no Brasil, tendo interposto acções junto do Ministério Público Federal e dos estados sobre desigualdade racial nas Forças Armadas. Actualmente é, na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), vice-presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra e presidente da Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra no Rio de Janeiro. Em Outubro, foi Adami que recebeu da vereadora Luciana Boiteux, em nome da OAB, a homenagem da Câmara Municipal do Rio de Janeiro às organizações e movimentos que lutam pela memória, verdade e justiça no estado. Na altura, considerou que a questão racial e as reparações pela escravatura são dos temas “mais importantes do Brasil e que não podem ser esquecidas”.
O que pensa das declarações do Presidente português de que Portugal tem a "obrigação" de "liderar" o processo de reparação aos países que foram colonizados?
Sobre a reparação da escravidão negra, eu acho que ele está certo. O que ele propõe é um caminho de acerto, um caminho de pacificação, um caminho de resgate do passado, um caminho, inclusive, de acordo com os tratados internacionais que mencionam a escravidão negra como um crime da história. Ao apontar que Portugal assuma a sua responsabilidade como país que conduziu a escravidão para pessoas pretas e pardas, ele dá uma solução para se chegar a uma posição de restauração e de equilíbrio da verdade em si. Isso não pode ficar, como bem apontou a ministra da Igualdade Racial do Brasil, Anielle Franco, apenas na palavra, apenas no desejo. E, principalmente, tem que haver também o pedido de perdão, pedido de desculpas.
Acha que Portugal tem que pedir formalmente desculpas ao Brasil por tudo o que fez?
Não só ao Brasil, mas a todos os cidadãos negros, que são descendentes daqueles que foram sequestrados em África. E, quando aqui chegavam [ao Brasil], tinham uma vida de sub-humano, sem direito até mesmo à condição de ser humano.
Mencionou que era bom que não ficasse só nas palavras do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, mas a verdade é que o Governo português já veio dizer que não tem nenhum plano de reparações...
O Governo português pode começar com um pedido formal de desculpas. Isso daria a todos os cidadãos negros do mundo uma sensação de justiça. Que as palavras sejam apenas palavras, mas isso também pode encaminhar para a cura. O Governo português, mais cedo ou mais tarde, vai ter que se defrontar com esse passado escravocrata. Houve na escravidão também lucro com esse tráfico de pessoas e isso tem consequências de imprescritibilidade. O relógio está parado aí para esse acerto de contas. Vai chegar, mais cedo ou mais tarde. E a outros países também. O debate da reparação da escravidão é um debate internacional que não envolve só o Brasil e Portugal, envolve muitos outros. A Inglaterra com os livros de contas das companhias das Índias que traficavam escravos pelo mundo inteiro. A França também tem a sua parte nesse assunto.
Há quem diga que o importante na história não são as reparações, mas sim ensiná-la. Ou seja, o importante é conhecimento, que as pessoas saibam o que aconteceu...
A verdade é um bem supremo. As reparações caminham na direcção da criação de um fundo de indemnização financeira, mas também caminham na direcção de outras que não são materiais. Aqui no Brasil, a escravidão negra produziu e produz até hoje consequências devastadoras para uma parte da população. As repercussões sentem-se até hoje. No Brasil é como se você tivesse dois tipos de cidadãos: os cidadãos com direitos por causa da cor da sua pele branca e os cidadãos sem direitos por causa da sua pele negra. Mesmo os direitos constitucionais para essa segunda categoria parece que não existem.
E isso é uma herança directa da colonização portuguesa?
É a herança directa da escravidão e, obviamente, Portugal foi responsável por essa escravidão, por sequestrar pessoas nas costas de África para as trazer para o Brasil para essa vida de trabalhos forçados, sem direito sequer à sua própria vida, sem direito a ser considerado um ser humano. Chegará a hora em que Portugal terá que partir para esse acerto de contas. Isso não quer dizer que o Brasil também não precise de fazer esse exercício, de tomar essa atitude perante o racismo que existe até aos dias de hoje e que discrimina a população negra e mestiça. Acontece diariamente, em todos os lugares do Brasil e em outros lugares do mundo. Esta é uma luta internacional, uma luta que atinge uma grande parcela da população mundial. Em Portugal, eu tenho visto daqui, que também essa herança escravocrata produz não só a dor do passado, mas a dor do presente.