expresso.ptexpresso.pt - 30 abr. 22:40

Reparações coloniais: um “assunto resolvido” ou um legado “atirado para debaixo do tapete”?

Reparações coloniais: um “assunto resolvido” ou um legado “atirado para debaixo do tapete”?

Discutir o colonialismo português e a sua marca na história da humanidade continua a gerar fortes reações. De um lado, critica-se a falta de uma política de memória e os elogios a um passado atroz; do outro, fala-se de um assunto arrumado com a abolição da escravatura. Afinal, como devem as reparações coloniais ser discutidas?

Para discutir o papel de Portugal no comércio de escravos, é preciso perceber a sua dimensão. Ao longo de 400 anos, estima-se que o império português tenha transportado pelo Oceano Atlântico quase seis milhões de escravos africanos - segundo os dados recolhidos pelo Slave Voyages, um projecto online que recolhe dados sobre as viagens de escravos ao longo da era colonial dos vários países. O valor representa quase metade dos mais de 12 milhões de africanos transportados para o “Novo Mundo” pelos impérios europeus durante o anterior milénio.

O transporte de escravos africanos ao longo da expansão marítima europeia é considerada uma das maiores migrações forçadas na história da humanidade pela Organização das Nações Unidas, a par da partição da Índia e da Segunda Guerra Mundial.

Esta semana, depois das declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sobre reparações históricas (e da reafirmação na terça-feira, em Cabo Verde), o preço a pagar pela escravatura, pelos massacres e pela exploração das ex-colónias voltou a ser tema de debate. Uns pedem que haja debate, apontando para um benefício português com o colonialismo e as dificuldades sentidas ainda hoje por cidadãos de origem africana; outros defendem que o assunto está resolvido, que já foram feitos esforços de reconciliação no passado e o Governo criticou o Presidente da República por ser “inoportuno”.

Para o historiador Francisco Bethencourt, professor no Departamento de História do King’s College de Londres e antigo diretor da Biblioteca Nacional, o processo de reparações históricas está “bastante atrasado”, e Portugal tem agido como se não tivesse “nada a ver com isso e não pode continuar a ignorar o problema”.

“Isto tem que ser levado com seriedade. A reparação não é possível ser total, porque Portugal simplesmente não teria dinheiro durante 100 anos para pagar as indemnizações devidas. O que deve haver é seriedade em considerar o problema e deve haver políticas de compensação para pelo menos, e estou a falar do mínimo dos mínimos, criar condições para que a minoria africana em Portugal seja mais bem integrada e educada”, defendeu Bethencourt, especialista em investigação sobre racismo e colonialismo, em entrevista ao Expresso.

Os pedidos de indemnização pelos crimes coloniais dos vários impérios europeus não são recentes. Em 1998, o Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional, já abordava os princípios das reparações históricas a vítimas de atrocidades. Mas o debate tornou-se mais aceso em 2020, quando os protestos antirracistas pela morte de George Floyd, nos Estados Unidos, rapidamente transformaram-se em protestos contra os símbolos coloniais e os seus resquícios na cultura de vários países.

TIAGO MIRANDA

Política

Reparações coloniais: da França à Alemanha e Países Baixos, como está a Europa a lidar com o seu passado?

Leia também

As reparações históricas pelos crimes coloniais do passado podem assumir várias modalidades. Há as puramente simbólicas - como pedidos de desculpas, ações para ajudar vítimas - ou financeiras e materiais, como indemnizações ou devolução de obras de arte, terras ou outras.

Um estudo de 2019 de Jaime Reis, Nuno Palma e Leonor Costa concluiu que a exploração das colónias por Portugal representou 20% do rendimento nacional no período entre 1500 e 1800, um benefício superior ao do Reino Unido. Outra investigação, de 2024, por Hélder Carvalhal e Nuno Palma, reafirmou que os rendimentos dos colonizados angolanos eram substancialmente inferiores aos dos colonos portugueses e de outros povos colonizados, devido à prática de trabalho forçado que foi implementada após a abolição da escravatura, em 1869.

Existe ainda uma plataforma onde estão enumerados os vários registos históricos do tráfico transatlântico de escravos, pelos diferentes países. Portugal e o Brasil (que só aboliu a escravatura em 1888) foram responsáveis por movimentar quase 2,5 milhões de escravos, só no século XIX. O Slave Voyages recolhe dados de vários trabalhos académicos da Europa, América, Ásia e África, para oferecer uma ‘imagem’ da dimensão do comércio de pessoas escravizadas em vários períodos da história.

A fortaleza de Maputo, em Moçambique, controlava a entrada de navios que levavam escravos Eric Lafforgue/Art in All of Us SIC Notícias

Pretérito Imperfeito

Portugal deve pedir desculpa por erros dos antepassados? E pagar reparações históricas? Recorde o debate no podcast ‘Pretérito Imperfeito’

Leia também

Atrocidades devem ser reconhecidas ou o “problema está solucionado”?

Para João Pedro Marques, um conhecido opositor de qualquer tipo de reparação histórica, as “declarações de Marcelo Rebelo de Sousa “são um disparate”, considerando que o Presidente fala destas indemnizações “como se fossem uma inevitabilidade, como se fossem justas e adequadas”.

“É um erro olhar para certos tipos de coisas à luz dos nossos conceitos atuais, nomeadamente a criminalização de certos tipos de coisas como nós fazemos hoje em dia (e bem), mas esquecendo que, em séculos passados, elas não eram criminalizadas. Pelo contrário, eram, em muitos casos, incentivadas. O Presidente da República está a esquecer isso tudo, é completamente errado e absurdo”, atirou o historiador, com vários artigos e romances publicados sobre temas da história colonial, esclarecendo que não se opõe à devolução de bens roubados, saqueados ou “erradamente compradas”.

Em dois artigos de opinião no Observador, Marques acusou ainda o Presidente da República de ter uma “aventura woke” e de fazer declarações “graves e surpreendentes”.

Ana Lucia Araujo, historiadora especialista no tráfico esclavagista transatlântico, avalia positivamente as declarações de Marcelo, por reconhecerem “as atrocidades que foram cometidas” e “um passado cujos legados presentes permanecem vivos de muitas maneiras”, e por ser necessário “encarar de frente os erros do passado e tomar medidas para corrigir esses erros”.

“Portugal e outros países europeus e americanos, como o Brasil e os Estados Unidos, obviamente têm uma responsabilidade pelos crimes do colonialismo. Veja bem que esse ‘passado’ não é tão longínquo assim. No caso das colónias portuguesas na África, a independência teve lugar há meros 50 anos. Em termos históricos, 50 anos é quase a história do tempo presente”, explicou Araujo, professora titular da Howard University, em Washington D.C. e membro da comissão científica do projeto da UNESCO ‘Rota das pessoas escravizadas’.

Padrão dos Descobrimentos tem sido um dos símbolos mais criticados (e defendidos) neste debate Damian Gollnisch/picture alliance via Getty Images

João Pedro Marques diverge dos restantes investigadores, sendo da opinião que as reparações necessárias já foram resolvidas. “As reparações por certas coisas do nosso passado colonial, eventualmente não por todas, já foram feitas. Essas reparações foram feitas na época em que, por exemplo, se combateu a escravatura, se capturaram navios negreiros no Atlântico e se aboliu a escravatura. Isso já foi feito, já está terminado. Portanto, é um erro repor esse problema histórico, que foi um problema do século XVIII e XIX, outra vez em cima da mesa. Está solucionado”, defende.

A verdade é que, mesmo depois da escravatura ser abolida e combatida, continuou a existir exploração colonial nos territórios portugueses - e no Brasil, recorde-se, a escravatura continuou a ser legal até ao final do século XIX. São também inúmeros os documentos e livros que explicitam os abusos de direitos humanos ao longo do final do século XIX e XX, pelas forças portugueses, passando pelos massacres levados a cabo durante a Guerra Colonial, como Pindjiguiti, Batepá ou Wiriamu.

Para Francisco Bethencourt, não faz sentido falar em compensações já feitas quando “há provas documentais claras do prolongamento do trabalho forçado até aos anos 60 nas colónias e esses equipamentos, essas infraestruturas, foram criados com esse trabalho forçado”.

Sala de fisioterapia da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, no Lumiar, em Lisboa

50 anos do 25 de Abril

A guerra acabou, as feridas continuam abertas

Leia também

O tabu de uma ferida “que ainda não cicatrizou”

Em 2021, a então deputada Joacine Katar Moreira propôs que fossem contextualizadas as sete pinturas murais no Salão Nobre da Assembleia da República, já que as imagens são descrições gráficas de momentos de escravatura, e pediu que os manuais escolares abordassem mais o passado esclavagista português (e que enaltecessem menos a expansão marítima).

As iniciativas por uma contextualização da memória imperial portuguesa, bem como sugerir a demolição Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, valeram-lhe inúmeros insultos racistas e xenófobos, dentro e fora do Parlamento. Mas no debate público ficou suspensa a conversa prática sobre como devemos lembrar a expansão marítima e o colonialismo português. Ficou resumida a isso mesmo: um debate.

Para Ana Lucia Araujo, falar do impacto do colonialismo mantém-se um tabu porque “trata-se de um passado ainda muito recente” e de uma era encerrada há menos de 50 anos.

“Muitos dos antigos moradores dessas colónias, que lutaram nas guerras coloniais, estão ainda vivos. Para alguns existe uma certa nostalgia desse passado colonial em que Portugal ainda reinava grandioso. As reações fortes também são devidas a um tipo de negação. Reconhecer erros e atrocidades cometidas no passado é colocar o dedo numa ferida que ainda não está cicatrizada, num contexto em que certos elementos desse passado ainda permanecem vivos no presente”, afirmou a autora. E recordou que “em Portugal, as populações cujos ancestrais eram originários das colónias portuguesas ainda se encontram em grande parte excluídos socialmente e economicamente” - são bem documentadas, aliás, as situações precárias em que vivem os cidadãos com origem nos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa).

Redd F / Unsplash

Ensino

Quantos são e de onde vêm os estudantes dos PALOP? Que cursos procuram e que problemas enfrentam? E como ajudam as nossas universidades?

Leia também

Araujo nota que nenhum país europeu ou americano tem uma relação saudável com o seu passado esclavagista” e empregou a expressão muitas vezes usada para descrever as atitudes em relação a esse passado: que é “atirado para debaixo do tapete”. Mas “reconhecer e lidar com esse passado não é um processo linear”. “Com os aniversários das independências das antigas colônias portuguesas em 2025, esse debate voltará à tona como nunca. E isso é um debate saudável que não deve ser evitado”, vincou a investigadora norte-americana de origem brasileira.

Francisco Bethencourt acredita que o facto de o tema levar a discussões tão inflamadas deve-se à “ausência de políticas de memória em Portugal nos últimos 50 anos, porque houve uma decisão de não mexer no passado, de deixar andar” e “estas coisas voltam sempre ao de cima”.

“Em Espanha, por exemplo, há uma lei que impõe a educação em relação à ditadura e a compreensão em relação à ditadura. Em Portugal também deveria existir uma política educativa clara de discutir o que aconteceu durante a ditadura e durante o período colonial. (...) Deve-se basear a discussão numa análise histórica serena, a partir de factos históricos e de números, que se procure ultrapassar o debate propagandístico e que Portugal enfrente os problemas de reparação que estão a ser discutidos em todos os países”, defendeu o historiador.

Museu Nacional da Escravatura, em Angola, de onde foram levados milhões de escravos para o continente americano Dogukan Keskinkilic/Anadolu Agency via Getty Images Entre o “saudosismo” da direita e a “visão tendenciosa” da esquerda

Neste tema, Bethencourt e João Pedro Marques trocam acusações contra a direita e a esquerda, respetivamente. O investigador do King’s College, que foi também diretor do Centro Cultural Gulbenkian em Paris entre 1999 e 2004, responsabiliza também “as guerras culturais lançadas pela extrema-direita” por negarem o passado esclavagista. E classifica olhares saudosistas sobre o legado imperial como “uma história de banda desenhada que reproduz os manuais escolares do salazarismo”.

“Eu acho extraordinário como a extrema-direita agita o nacionalismo, quando o nacionalismo que eles desenvolvem é um nacionalismo de papelão dos manuais escolares dos anos 50, que não tem nada a ver com a pesquisa histórica atual (...). É completamente contrário aos interesses nacionais de Portugal, que só são servidos com a perspetiva de criar relações iguais com os novos países independentes e de criar uma dinâmica onde haja o reconhecimento destes problemas históricos, e onde haja alguma vontade de compensação mínima”, sublinhou Bethencourt.

Mas João Pedro Marques refuta a ideia de um consenso sobre a matéria, falando de uma “lenda que a extrema-esquerda e os ativistas querem promover” e afastando qualquer negociação com aqueles que, considera, terem uma visão muito enviesada da história.

“Os ativistas não querem acordo nenhum. Os ativistas querem um pagamento, querem a alteração dos manuais escolares, querem a remoção de certas estátuas do espaço público, querem a demolição do padrão dos descobrimentos. Há acordo a ter sobre isso? Não, não temos de chegar a nenhum acordo”, argumentou, deixando críticas a grupos e ativistas como Mamadou Ba que têm feito campanha pela remoção de símbolos do império português.

“Se existe uma corrente de opinião dentro da sociedade portuguesa que reivindica certas coisas e outra que se lhe opõe, o debate faz todo o sentido. Agora, o caminho para a frente eu vejo como muito difícil. (...) O que os ativistas querem não é a história. O que os ativistas querem é a versão deles da história. A versão deles da história está errada, nesta área está errada. É demasiado unilateral, parcial, tendenciosa e está errada”, rematou Marques, autor de livros como “A culpa do homem branco” ou “Descobrimentos e outras ideias politicamente incorretas”.

Busto de Salazar retirado da Câmara de Lisboa. Está num depósito fora da capital, entre centenas de peças do Estado Novo

50 anos do 25 de Abril

25 de Abril: Um dia, a ditadura caiu mas ficaram os seus símbolos sem que ninguém soubesse o que fazer com eles

Leia também

Também Ana Lucia Araujo deixa críticas à direita pela sua recordação do passado (ou pela falta dela), mas oferece um conjunto de sugestões sobre como pode o país olhar para o legado colonialista, que afirma serem “reparações simbólicas” e que podem abrir o caminho para “remediar as desigualdades oriundas da escravatura e do colonialismo”.

“Os próximos passos com certeza passam por promover uma conversa nacional, que envolva incentivos para se fazerem estudos sobre o assunto, estudos académicos, publicação de livros, colóquios, congressos. Que a história do comércio de africanos escravizados e do colonialismo português seja incorporada nos livros didáticos e nos museus. Que Portugal crie monumentos e memoriais para homenagear as vítimas da escravatura e do colonialismo”, pediu.

O pagamento de indemnizações às antigas colónias é motivo de divergências entre historiadores e ativistas - apesar de algumas já terem sido levadas a cabo por Portugal. Mas a devolução de obras de arte é menos controversa. O retorno de obras culturais e objetos saqueados pelos países colonizadores tem-se repetido ao longo dos anos, liderada por países como França, Alemanha, Suíça ou Países Baixos (até o Reino Unido já começou a devolver objetos saqueados, depois de afastar durante anos a ideia).

Bethencourt explica que este é um problema “mais fácil” de resolver e que pode, inclusive, ser um motor de cooperação entre Portugal e as ex-colónias.

“A maneira de criar relações de respeito e de interação com os novos países independentes é contribuir para que eles possam reconstituir as suas políticas de memória e as suas identidades, porque muitos destes países ficaram bastante esvaziados de objetos das suas culturas”, declarou.

Entre os diferentes partidos não existem, contudo, muitas propostas concretas nesta matéria. Apenas o Livre e o Bloco de Esquerda falam sobre reparações coloniais nos seus programas eleitorais e de contextualização em manuais escolares e expressões artísticas. O PCP, sem dizer se concordava ou não, defendeu uma maior cooperação com as ex-colónias. Do lado do Chega, ficou bem esclarecida a evocação do imperialismo português durante a cerimónia solene do 25 de Abril, na Assembleia da República. E a Iniciativa Liberal, após as declarações de Marcelo, defendeu que não faz sentido falar em reparações coloniais.

Depois das declarações do Presidente da República, o novo Governo afirmou que “não esteve e não está em causa nenhum processo ou programa de ações específicas com o propósito” de reparação pelo passado colonial português, garantindo que seguirá “a mesma linha” dos anteriores executivos.

NewsItem [
pubDate=2024-04-30 23:40:29.857
, url=https://expresso.pt/politica/2024-04-30-reparacoes-coloniais-um-assunto-resolvido-ou-um-legado-atirado-para-debaixo-do-tapete--83080a26
, host=expresso.pt
, wordCount=2580
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2024_04_30_181697695_reparacoes-coloniais-um-assunto-resolvido-ou-um-legado-atirado-para-debaixo-do-tapete-
, topics=[política]
, sections=[actualidade]
, score=0.000000]