www.sabado.ptMaria J. Paixão - 28 abr. 11:44

O que faz falta é animar a malta

O que faz falta é animar a malta

Opinião de Maria J. Paixão

Dos muitos chavões que se repetiram nos últimos dias, um dos mais recorrentes entre as vozes desanimadas é o de que "falta cumprir Abril". As análises multiplicam-se no escrutínio das promessas de Abril que ainda se não concretizaram na plenitude – da emancipação das mulheres, à saúde e educação, passando pela habitação e pela sempre etérea liberdade. 

A Revolução de Abril foi um projeto emancipatório; nos primeiros tempos, foi utopia saída à rua. Num país onde algumas regiões do interior profundo nunca tinham tido acesso a cuidados de saúde especializados, sonhou-se a Saúde universal e integral – do Serviço Médico à Periferia até ao Serviço Nacional de Saúde. Num país em que ¼ da população era analfabeta em plena década de 1970, sonhou-se a Educação igual e emancipadora – da autogestão de professores e alunos e ocupação de espaços para criação de escolas até à Escola Pública. Num país profundamente desigual e alicerçado numa economia colonialista, sonhou-se o Trabalho democrático e realizador – da auto-organização dos trabalhadores nas fábricas e dos campos até à dignificação do trabalho. Num país em que mais de um milhão de pessoas vivia em barracas, sonhou-se a Habitação digna e salubre para todos – do Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) à habitação pública. No longo Abril do nosso passado, sonhou-se a paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação, na divisa de Sérgio Godinho que continua a inundar as ruas todos os 25 de abril. E esse sonho lindo, como cantava Zé Mário Branco, foi possível – ainda que transitoriamente – porque foi posto em marcha de forma coletiva, nos hospitais e clínicas, nas escolas e universidades, nas fábricas e nos campos, nos bairros e nas associações recreativas, por todos e todas quantos ousaram sonhar. A força de Abril não está, nunca poderá estar, no ponto de chegada. Porque esse será sempre insuficiente e curto para aquilo que se sonhou. A força de Abril estará sempre, só pode estar, no ponto de partida. Porque ao início era a Utopia; era a possibilidade, real e palpável, de construir fraternidade. Enquanto tal, Abril ficará sempre por se cumprir, suspenso no tempo-espaço, porque a emancipação é um projeto sem fim.

Neste contexto, o frémito em torno das promessas de Abril que ficaram por cumprir parece desvendar uma outra crise: a ausência de utopias no nosso tempo. A Revolução trouxe-nos onde trouxe porque, num momento de rutura histórica, ousámos imaginar um futuro coletivo emancipador. E, porque ousámos imaginar, ousámos organizarmo-nos coletivamente para o pôr em prática. O único caminho possível era em frente; e era um caminho ambicioso, de transformação radical. Os fracassos, as falhas e as insuficiências que se formaram pelo caminho são subprodutos incontornáveis do processo de fazer baixar a Utopia à prática. 

O espírito do tempo presente é cruelmente diferente. A Utopia desapareceu. Os projetos políticos existentes tendem a olhar para trás, e não mais em frente. De um lado, os que reivindicam o projeto Abril e a sua continuação. Do outro, os que recusam esse projeto e reivindicam projetos mais recuados no tempo. Em ambos os casos, a referência é o passado e não o futuro. Talvez também por isso Abril continue eternamente por cumprir: 50 anos volvidos, não soubemos renovar o Sonho. Sem prejuízo da gravidade dos ataques que a Saúde, a Educação, o Trabalho, a Habitação e até a Paz têm sofrido recentemente, talvez hoje não baste defender o Sistema Nacional de Saúde, a Escola e a Universidade Pública, o Trabalho digno, o acesso à Habitação e uma política externa de Paz real (e não meramente formal). A crise que se faz sentir nesses vários setores da vida social não é somente resultado dos ataques cerrados que lhes têm sido dirigidos por diversos quadrantes políticos. É, além disso, produto de uma nova rutura histórica que se distende, pelo menos, desde os finais do século passado. Num mundo radicalmente diferente daquele em que o país se construía há 50 anos, é inevitável que as estruturas e sistemas instituídos entrem em crise também por obsolescência.

A Utopia é, porventura, a mais premente necessidade do presente. É urgente um novo sonho capaz de uma mobilização das massas. Caso contrário, abandonar-nos-emos ao desânimo, à decadência moral e à nostalgia de um passado que não existiu. Precisamente os sentimentos mais suscetíveis de exploração pelas forças ultrarreacionárias que despontam por toda a parte. Para combater esse movimento do passado, é imperativa uma nova visão de futuro, redentora e corajosa. O futuro é agora, mas tem de ser futuro; não pode ser uma versão recauchutada do passado. Defender o SNS é, mais do que tudo, uma nova imaginação coletiva sobre o que significa universalizar e democratizar a saúde, para os que nela trabalham e para os que nele encontram o cuidado que precisam, desde o berço até ao leito de morte. Defender a escola pública é, sobretudo, uma nova imaginação sobre o que significa uma educação pedagógica e socialmente emancipatória. O verbo defender deve hoje assumir uma dimensão pró-ativa, sob pena de esvaziar-se de significado. 

Evocando o terceiro grande vulto da música de intervenção portuguesa, o infinito Zeca Afonso: «O que faz falta é animar a malta/O que faz falta/O que faz falta é acordar a malta/O que faz falta (…) O que faz falta é agitar a malta/O que faz falta/O que faz falta é libertar a malta/O que faz falta.». A 25 de abril de 1974, animámo-nos por um ideal e projetámos a nossa madrugada. 50 anos depois, é urgente re-animar a malta. É urgente a Utopia.  Mais crónicas do autor 28 de abril O que faz falta é animar a malta

A 25 de abril de 1974, animámo-nos por um ideal e projetámos a nossa madrugada. 50 anos depois, é urgente re-animar a malta. É urgente a Utopia. 

21 de abril Pedir a palavra em tempo de silêncio

A forma como as instituições e as estruturas oficiais têm lidado com os protestos e vozes de contestação ao massacre palestiniano deve suscitar especial preocupação.

14 de abril Contadores de histórias

Se abstrairmos das questões técnicas, obtemos uma imagem clara da inadaptação do Direito vigente para atender ao maior desafio que a Humanidade enfrenta. O tempo e o espaço do Direito não são o tempo e o espaço da urgência climática. E este desfasamento tende apenas para se aprofundar com o tempo.

07 de abril Sensibilidade e bom senso

Na tríade economia-sociedade-ambiente, os valores económicos são hierarquicamente superiores aos demais. As medidas sociais e ambientais dependem eternamente de conjunturas económicas ótimas.

31 de março O Homem é o lobo do Homem?

A Lei do Restauro da Natureza seria, em abstrato, pouco polémica. Trata-se de uma típica política europeia, moderada e pouco interessante. Não obstante, foi arrastada para o olho do furacão.

Mostrar mais crónicas Tópicos maria j paixao opiniao
NewsItem [
pubDate=2024-04-28 12:44:00.0
, url=https://www.sabado.pt/opiniao/convidados/maria-j--paixao/detalhe/o-que-faz-falta-e-animar-a-malta
, host=www.sabado.pt
, wordCount=1123
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2024_04_28_1252290817_o-que-faz-falta-e-animar-a-malta
, topics=[opinião, maria j. paixão]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]