David Erlich - 2 out. 16:18
Um professor memorizando nomes
Um professor memorizando nomes
Opinião de David Erlich
O vetusto paradigma do antropocentrismo radical é o de que, à racionalidade do humano, se opõe a irracionalidade de todos os outros seres vivos. Nesta perspetiva, um abismo separa o homo sapiens de todas as outras espécies. É, por exemplo, a de Descartes, cujo intelecto era insensível ao sofrimento dos animais que usava nas suas experiências.
Descobertas científicas recentes têm sugerido, no entanto, uma alternativa. Esta não implica banalizar a singularidade humana – nem, inclusivamente, como fazem alguns, diabolizar a própria humanidade, como se ela não passasse de um cancro do planeta.
Por exemplo, no que toca à cultura, que sempre pensámos ser um exclusivo do humano, sabemos agora que não é. Na Costa do Marfim, descobriu-se que três grupos de chimpanzés usavam diferentes ferramentas para abrir o mesmo tipo de noz, evidenciando uma transmissão geracional não determinada pela biologia.
Há provas de que grupos de baleias se influenciam ao nível dos cânticos – também debaixo de água parece haver trends.
Mais do que anular o antropocentrismo, esta perspetiva pode refundá-lo, colocando o humano em ligação harmónica com a Natureza, compreendendo-se não como externo a ela, mas sim sua parte constitutiva. A mais sofisticada parte, é certo – mas ainda assim parte da Natureza.
Há aspetos que se mantêm, no entanto, exclusivamente humanos. Ora, atrevo-me a dizer que a atribuição de nomes próprios é um deles.
O nome próprio destaca o sujeito como singularidade. Aponta para o seu carácter irredutível. Abre no mundo uma certeza, ainda que efémera – existe este ser humano com a sua irrecusável dignidade. Mas introduz também uma interrogação, enunciada na segunda pessoa do singular apesar de também poder ser feita ao espelho: quem és?
O nome carrega consigo uma responsabilidade. Afinal de contas, todo o nome próprio – entendido aqui no sentido lato, ou seja, incluindo os apelidos – é um legado, que nos cabe honrar ou recusar, prosseguir ou modificar. E, sendo o nome um significante, o seu significado – aquilo que somos – só pode ser continuamente criado ao longo de uma vida. Essa possibilidade de criar, com as cartas que nos foram dadas, o jogo que consubstanciará o significado do nome que temos, faz esta responsabilidade ligar-se intimamente à liberdade de existirmos como seres não apenas nomeados, mas que nomeiam e se autonomeiam.
Um modo de amar o próximo é, portanto, termos afeto pelo seu nome. Um afeto em certa medida espantado. Um afeto interrogativo. Que genealogia sugere este nome? Quem serão os seus antepassados? Quem está por trás deste nome? Que memórias? Que projetos?
Este ano, por agora – é um número flutuante – tenho 151 alunos. Esta é a altura em que, lentamente, vou memorizando os nomes. Em inícios de novembro, sabê-los-ei a todos.
Algo muda quando finalmente conheço todos os nomes numa turma. Subitamente, sinto-me mais perto. Ao interiorizar os nomes de quem comigo aprende, entroso-me nessa característica tão preciosa quanto indefinível: a humanidade do outro, na qual revejo a minha.
Sabermos os nomes uns dos outros é um modo de constatar: celebramos o mistério que somos, celebramos a possibilidade de ser mistério juntos. Mais crónicas do autor 15:18 Um professor memorizando nomes
Algo muda quando finalmente conheço todos os nomes numa turma. Subitamente, sinto-me mais perto. Ao interiorizar os nomes de quem comigo aprende, entroso-me nessa característica tão preciosa quanto indefinível: a humanidade do outro, na qual revejo a minha.
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