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Um fabuloso ser exótico disfarçado de futebolista inglês

Um fabuloso ser exótico disfarçado de futebolista inglês

Guarda-redes por convicção, Vladimir Nabokov escreveu páginas e páginas sobre futebol

Foi um menino rico, viveu na opulência dos palácios de São Petersburgo, soube apaixonar-se pelas noites brancas de Dostoiévski. Os pais colocaram-no no colégio Tenishev, que não abria lugar para qualquer, a mãe protegia-o como uma crisálida e, talvez por isso, o único desporto que o deixava praticar era a caça às borboletas no jardim de sua casa. Descreveu tudo isso em Fala, Memória, a sua autobiografia. Às escondidas jogava futebol na equipa do colégio. A guarda-redes. Era tranquilo. Colocava-se a preceito, dominava os ângulos, não entrava em excentricidades. Ou seja, não dava nas vistas. O seu irmão Serguei tentou segui-lo mas não levava muito jeito. Falo de Vladimir Vladimirovich Nabokov. Um dia escreveu: «O guarda-redes é a águia solitária, o homem misterioso, o último dos defesas. Não guarda apenas a baliza: guarda os sonhos». Falo do rapaz tomado pela tuberculose. Tomado pela fragilidade do físico. O rapaz que teimou, apesar de tudo, em guardar sonhos.

Veio a revolução dos bolcheviques e os Nabokov perderam o seu palácio. O menino rico foi para Cambridge estudar inglês, foi em inglês que escreveu muita da sua obra. Não abandonou as balizas. Jogou na equipa universitária. Houve gente do seu tempo que dedicou livros a Vladimir Nabokov/guarda-redes: Brian Boyd (Vladimir Nabokov: The Russian Years), Thomas Karshan (Nabokov and Play). Mas, acima de tudo, houve o poema do pai de Lolita que falava da bola e do jogo: «(…)Is kicked in a lightning curve/The sonorous shot soars, and/I leap up, blocking its rapid flight/With a deflection». Vladimir era sobretudo um solitário.Este poema é dedicado a uma rapariga. Uma rapariga que ele vira passar na rua acompanhada por um rapaz igual a tantos outros. E ele reconhecera-o pelo riso, pelo cachimbo, pela alegria. E a rapariga viera numa tarde de céu azul para ver o seu jogo. «Gratifying game! An open space/ With dazzling shirts. The lively ball».

Os Nabokov ficaram sem dinheiro. Vladimir ficou sem o fim da infância. O menino rico de SãoPetersburgo mudou rapidamente para homem em Cambridge. Não houve nenhum guarda-redes eterno que lhe guardasse o sonho. E ele, nas balizas, deixou de ser tranquilo como era. Gritava. Gritava muito. No fundo, libertava do peito a revolta de não ter conseguido continuar a ser menino e não ter tido a coragem de dar a mão aTamara, paixão entranhada da sua infância pintada a borboletas. E os defesas obedeciam-lhe como se cada grito seu fosse uma ordem de general de exército.

Foi para Londres e para oTrinity College.Continuou a jogar: «Encantava-me o lugar de guarda-redes. Na Rússia, como nos países latinos, é um posto rodeado de uma aura de luminosidade que não se explica.Distante, solitário, impassível». E concluía: «Eu não guardava uma baliza, eu guardava um segredo».

O corpo medrou-lhe, desapareceram as fragilidades tísicas da meninice, usava um barrete grosso, uma camisola de gola alta e guardava as luvas no bolso traseiro dos calções. «Tive dias brilhantes e vigorosos: o cheiro intenso da relva, o avançado famoso que se aproximava arrasando defesas e empurrando a bola com a ponta cintilante da bota até ao disparo venenoso e à minha feliz parada».

Durante toda a vida, Valdimir Nabokov escreveu sobre futebol. Prosa e poesia. Como em 1920, o poema Assim, Futebol: «A bola saltava sem que soubesses/que um dos jogadores descuidados/criava o entardecer em silêncio/e a anatomia dos tempos esquecidos». Guardou nas memórias: «Cruzava os braços e encostava o ombro ao poste esquerdo. Desfrutava do luxo de fechar os olhos e escutava, então, os latidos do coração, ao mesmo tempo que sentia chuviscos cegos na minha cara e ouvia, distantes, os sons soltos do jogo.Via-me como um fabuloso ser exótico disfarçado de futebolista inglês que escrevia versos num idioma que não entendia sobre um país do qual nada sabia». Em Berlim, jogando pelo Russian Sport Club, chocou com violência contra um avançado contrário. Ficou maltratado. A mulher, Vera, pediu-lhe que parasse. Vladimir deixou as balizas: «Em calções curtos/e camisolas multiculores/os jogadores contrários avançavam». Ele é que já não estava lá.

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