rr.sapo.pt - 2 out. 23:30
Guerra não é futebol. “Noticiar um conflito a puxar por um lado ou por outro, não ajuda”
Guerra não é futebol. “Noticiar um conflito a puxar por um lado ou por outro, não ajuda”
Angelo Romano, da Comunidade de Sant’Egídio, diz que nos conflitos armados que já mediou nunca encontrou “monstros”, mas “pessoas que cometeram monstruosidades”, e que quem faz a guerra “não a quer para os seus filhos”. Num seminário para jornalistas, em Roma, pediu que não aceitem “normalizar” a violência.
O padre Angelo Romano é reitor da Basílica de São Bartolomeu na Ilha Tiberina, em Roma (que desde 2000 é um memorial aos mártires dos séculos XX e XXI), e é um dos responsáveis da Comunidade de Sant’Egídio, que já mediou muitos conflitos armados, sobretudo em África. Um deles foi o de Moçambique.
Num seminário para jornalistas portugueses, promovido pela Universidade de Santa Croce, em Roma, lembrou que “há sempre razões para começar um conflito” armado. Comum a todos é herança de ódio que fica para várias gerações. “É uma herança envenenada. A guerra não é agradável, os pesadelos ficam”, afirmou.
Para Angelo Romano “não se pode aceitar que a única perspetiva seja multiplicar o ódio até ao infinito!”. E pediu aos jornalistas que não contribuam para a “normalização” da guerra, porque é urgente “fazer crescer a cultura da paz”.
“Uma das coisas que me horroriza é que agora é fácil ver a morte em direto, continuamente. Na Ucrânia há os drones, que têm câmara e vê-se a cara horrorizada de um jovem russo de 18 anos que vai morrer! Seria preciso abrir um debate sobre estas coisas, porque a desumanização também se faz através destes meios. Eu conheci muitos responsáveis pela guerra, mas ninguém quer isto para os seus filhos. Eu nunca encontrei monstros, encontrei homens que faziam monstruosidades”, garantiu.
Referindo-se em concreto ao conflito israelo-palestiniano, lembrou que antes dos ataques de 7 de outubro de 2023 não faltou quem alertasse, de ambos os lados, para os riscos que se corria. Aos jornalistas, hoje, pede que não aceitem “a demonização do outro”.
“O que há a fazer é contar as histórias das pessoas. Muitas vezes quando há uma quantidade elevada de mortos e feridos, perde-se a dimensão das coisas… contar histórias restitui o horror da guerra. Contar a história das crianças, de um lado e do outro”. Mas, sublinhou, é preciso “nunca entrar na lógica do futebol, estar por uma equipa ou por outra. Noticiar um conflito a puxar por um lado ou por outro, não ajuda”.
Por uma cultura de pazCriada em 1968, a Comunidade cristã de Sant’Egídio está hoje presente em 70 países, e a maioria dos que nela trabalham são leigos. “Fazemos trabalho voluntário ao lado dos pobres”. Crianças, idosos, migrantes ou portadores de deficiência, as prioridades foram sendo adaptadas às necessidades de cada época. E uma delas foi o trabalho pela paz, com uma intervenção fundamental no Líbano (1983), na Etiópia (onde depois da guerra civil ficou a fome), e também na ajuda humanitária a Moçambique, onde desempenharam um papel fundamental no processo de pacificação do país.
Na República Centro Africana estão ainda a ajudar no processo de desarmamento. “As Nações Unidas pagam a quem entregar as armas. Nós juntamos a isso apoio alimentar e ajudamos a promover a sua integração”, explicou o padre Angelo, sublinhando que o que fazem complementa o que o Vaticano possa promover na mediação da paz.
“A Santa Sé é um Estado, nós fazemos coisas que um Estado não pode fazer”, lembrou. Num país onde “há uma pluralidade de grupos armados, mas não há um conflito religioso” entre cristãos e muçulmanos, como se quis fazer crer, foi “muito importante” o Papa ter ido abrir a porta do Jubileu na catedral de Bangui, em 2016. “Foi ao bairro muçulmano, recebeu o Imã local no seu carro e deram a volta à cidade. Depois disso os muçulmanos deixaram de estar isolados”.
A promoção da cultura da paz é hoje uma das prioridades da Comunidade de Sant’Egídio, como prova o recente encontro que promoveram em Paris.
Sobre os migrantes, falou da experiência em Itália. “Na Comunidade de Sant’Egídio criámos uma escola de italiano para os migrantes, porque a língua é a primeira coisa. Se não falam italiano, não há integração possível. Muitos dos que fizeram essa formação connosco estão agora a trabalhar com os novos imigrantes. Temos um jovem paquistanês que fala sete ou oito línguas do Paquistão, um recurso enorme para acolher os que chegam”.
“Também fizemos corredores humanitários para os migrantes que ficaram bloqueados no Líbano, na Líbia e na Etiópia, a maioria sírios. E fizemos também corredores no Paquistão”. Muitos dos que chegam poderão conseguir “proteção humanitária: mulheres com crianças, feridos, pessoas com doenças. Até hoje chegaram 3 mil pessoas assim, e estão todas integradas. O acolhimento é feito por italianos que voluntariamente ofereceram a casa, em colaboração com a Cáritas e com a igreja protestante”, indicou ainda.
Para este responsável é fundamental, também do ponto de vista da comunicação, que o fenómeno migratório seja olhado “com olhos mais humanos e racionais”, porque “é uma coisa muito fácil de explorar em termos políticos, utilizar as emoções e sobretudo o medo. O medo é muito poderoso”.