observador.pt - 2 out. 22:11
Francesca Albanese, relatora da ONU para a Palestina: "Guterres está a sofrer bullying institucional de Israel"
Francesca Albanese, relatora da ONU para a Palestina: "Guterres está a sofrer bullying institucional de Israel"
Francesca Albanese ficou "chocada" por Guterres ter sido declarado persona non grata. Relatora, que admite usar "linguagem subversiva", deixa duras críticas a Israel — e fala em "atos de genocídio".
Assume que utiliza uma “linguagem disruptiva e subversiva” e reconhece que “alguns” Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) ficam “incomodados” com as suas intervenções. Figura controversa, Francesca Albanese, relatora da ONU para os territórios palestinianos ocupados, não tem pudor em criticar publicamente Israel e o modo como o Estado judaico tem agido no conflito contra o Hamas na Faixa de Gaza. Em entrevista ao Observador, a italiana defende que faz um “trabalho valioso” e que tem denunciado a “hipocrisia” no seio da comunidade internacional: “As críticas fazem parte do meu trabalho”.
Em Lisboa para participar numa conferência no ISCTE, Francesca Albanese disse que ficou “chocada, mas não surpreendida” com a decisão de Israel de declarar, esta quarta-feira, António Guterres como persona non grata, não podendo pisar mais território israelita: “Tenho realmente pena que o secretário-geral, que tem uma carreira distinta e que é a autoridade máxima das Nações Unidas, esteja a ser maltratado como está a ser”.
Nesta entrevista, a relatora mantém a sua postura “disruptiva”. Diz, por exemplo, que não tem dúvidas de que existe um “genocídio” em curso na Faixa de Gaza, argumentando que a região está a ser “destruída”. No entender de Francesca Albanese, os israelitas “pretendem destruir” o grupo étnico dos palestinianos “e isso está a ser dito e feito”. A especialista em Direito, no cargo desde maio de 2022, critica ainda o “clima de indiferença” na comunidade internacional e relaciona-o com um “certo racismo contra os palestinianos”.
“Israel cometeu atos de genocídio e continua a cometer atos de genocídio num clima de indiferença”Já passou quase um ano desde que a guerra começou na Faixa de Gaza e o conflito não parece que vá terminar num futuro próximo. Tem havido vários avanços e recuos sobre um cessar-fogo. Pensa que, neste momento, Israel e o Hamas desejam um cessar-fogo? Ou estão apenas a desviar atenções?
Primeiro que tudo, falar sobre uma guerra é um equívoco. Guerras acontecem entre Estados. Israel não está atacar o Estado da Palestina, está a atacar o Hamas, quer erradicar o Hamas. Mas a realidade é que lançou uma ofensiva contra todo o povo palestiniano, com consequências fatais não só na Faixa de Gaza, como também na Cisjordânia. As consequências são sérias. Portanto, a meu ver, não devemos chamar isto de guerra. É um ataque e um genocídio. Israel cometeu atos de genocídio e continua a cometer atos de genocídio num clima de indiferença.
Acha possível um cessar-fogo?
Penso que quer o Hamas quer Israel têm agendas políticas. Com o que estou mais preocupada é com as pessoas que estão a pagar o preço de tudo isto, principalmente os palestinianos. Mas também os israelitas, porque a sociedade está a mergulhar de nariz rumo ao colapso.
E o argumento usado por Israel, de que se está a defender do Hamas de forma a evitar um novo 7 de Outubro?
Julgo que tem de ser reconhecido que Israel está a atacar a população palestiniana dentro de um pequeno território. Isso é inaceitável. Continuamos a falar sobre autodefesa de Israel — e sobre a autodefesa dos palestinianos, que estão a ser vítimas de uma agressão reconhecida pelo Tribunal Internacional da Justiça? Devemos ser mais honestos e imparciais tanto com os israelitas, como com os palestinianos. E agir, como costumo dizer, com ponderação e compaixão, em vez de agir com discursos que muitas pessoas não entendem completamente.
Já falou sobre genocídio. No que se baseia para definir assim o que está a acontecer contra o povo palestiniano?
A situação é muito má. Existem mais detalhes no relatório que escrevi em março de 2024. Israel cometeu atos de genocídio através de assassínios e usa tecnologia anti-bunker, que mata 250 pessoas por dia. Israel restringiu água, comida, medicamentos e eletricidade durante meses, deixando que a população morresse de fome. Como já disseram alguns dos meus colegas, nunca vimos uma população a ficar com fome tão rapidamente, de forma tão intensa. E a fome deu origem a doenças. Não contam apenas as pessoas que foram mortas a tiro ou que morreram em bombardeamentos. Também contam as pessoas que morreram por doenças ou fome. E Gaza está destruída. Quer dizer, se isso não é genocídio… Eles [israelitas] pretendem destruir totalmente um grupo e isso está a ser dito e feito. Os soldados israelitas tornam-se os executores desses planos.
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E quanto à Cisjordânia? Considera que a situação é igualmente grave?
É muito grave. Tem sido muito grave desde o início. É preciso ligar os pontos e olhar com atenção para a violência que foi desencadeada contra os palestinianos em Gaza e contra os palestinianos na Cisjordânia. Nesta região, vê-se a destruição de casas, hospitais, mesquitas, centros recreativos… Foi chocante. A situação já era sombria antes, mas isto está a tornar a vida insuportável para os palestinianos. O genocídio que foi cometido em Gaza pode escalar e ser cometido noutros lugares.
A situação no Médio Oriente tornou-se mais tensa recentemente, com os ataques de Israel no Líbano e o ataque do Irão contra Israel. Acha que a situação pode ficar pior para os palestinianos?
Acho que sim.
Porquê?
As pessoas agora não têm onde viver. Para aonde vão? Não há um plano, não há uma estratégia. A região pode tornar-se um dos lugares mais horríveis da História moderna. Precisamos de parar com isto. E os palestinianos vão precisar de apoio, porque a vida de centenas de milhares foi marcada pela perda de familiares e até crianças. Vimos tantas crianças sem braços, sem pernas, sem pais… As crianças não têm escolas, não têm casas. Não é uma vida digna.
Como avalia a reação da comunidade internacional ao que se está a passar na Faixa de Gaza? Já criticou em várias entrevistas os países europeus, dizendo que a resposta tem sido frágil. Como é considera que a Europa deveria ter reagido?
Precisamos de parar de fazer negócios com Israel. A Europa é o principal parceiro comercial de Israel. Representa uma parte importante do PIB [da economia israelita], além de haver exportações de armas e petróleo que é usado para caças. Sou a favor da proteção da Palestina, dos israelitas e dos palestinianos. Uma vida não vale mais do que outra — e isso é que não ouço por parte dos líderes europeus. Parece que existe um viés contra os palestinianos e isso é inaceitável. O racismo não deveria existir no século XXI.
Considera que existe um viés racista contra os palestinianos na Europa?
Acho que há muito racismo contra os palestinianos, como a negação da Nakba [êxodo dos palestinianos após a criação do Estado de Israel em 1948] e a negação da existência do povo palestiniano. E até de uma forma condescendente. Já ouvi políticos a dizer que estão a ajudar os palestinianos ao reformarem a Autoridade Palestiniana. Mas quem pensam que são para fazerem isso? Isso são assuntos internos. O que precisam é de assegurar que os palestinianos não vivem numa ditadura militar e que têm direito à autodeterminação. Depois então podemos envolvermo-nos com o Estado da Palestina.
Os Estados Unidos são um dos maiores aliados de Israel. Isso influencia a maneira como a Europa age?
Sim. Enquanto europeus, temos uma tradição diplomática que está a ser completamente eliminada. Temos uma tradição de negociação, de forma a evitar guerras, e isso está perder-se por causa da doutrina de choque dos Estados Unidos. A doutrina de choque dos Estados Unidos está a tornar-se a nossa doutrina.
Considera que o reconhecimento do Estado da Palestina por países europeus como Espanha, Noruega ou a Bélgica ajuda a causa palestiniana?
É importante, mas tem de ser acompanhado por atos. Como disse, é importante avançar com sanções e desinvestimento em Israel, reavaliando o apoio político e diplomático a Israel. E também é importante que mais países se juntem à queixa contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça.
E o Governo português? Como avalia a sua postura nesta guerra?
Acho que o Governo tem tomado posições baseadas em princípios, o que é muito importante. Portugal apoiou a Palestina nas Nações Unidas este ano, votou a favor da resolução da Assembleia-Geral que remeteu o caso da Palestina para o Tribunal Internacional de Justiça, votou a favor da aplicação do parecer consultivo do Tribunal Internacional de Justiça. Porém, agora precisa de agir de acordo com isso. E colocar em prática ações concretas. Praticar o que prega, como costumo dizer.
Esta quarta-feira, Israel declarou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, persona non grata. Surpreendeu-a?
Sim, fiquei chocada, mas não surpreendida. Fiquei chocada por aquilo que Israel está a fazer e como está a tentar alienar todos nas Nações Unidas com as suas táticas. Isto é… bullying, [Guterres] está a sofrer bullying institucional e tenho realmente pena que o secretário-geral, que tem uma carreira distinta e é a autoridade máxima das Nações Unidas, esteja a ser maltratado como está a ser.
Israel tem lançado várias críticas à atuação das Nações Unidas e inclusivamente a si, acusando-a de tratamento injusto e até de antissemitismo. Como lida com isso?
As críticas fazem parte do meu trabalho. E significa que estou a fazer algo valioso, em que coloco um espelho [em frente ao] que os Estados-membros estão a fazer. Mostro o nível de hipocrisia e mantenho o nível muito alto quando se trata de Direito Internacional, de Direitos Humanos. Sei que utilizo uma linguagem disruptiva e subversiva. Mas a verdade, neste contexto, é subversiva. Tento trazer a verdade dos factos e cumprir o Direito Internacional. Sei que é algo que incomoda alguns, mas não a maioria. A maioria dos Estados-membros continua a apoiar o meu mandato.