expresso.ptJosé Miguel Júdice - 1 out. 21:00

As causas: orçamento - a hipótese de Kafka

As causas: orçamento - a hipótese de Kafka

A hipótese é que na votação inicial na generalidade o PS ou o CHEGA viabilizem a passagem do Orçamento à discussão na especialidade, depois são aprovadas alterações profundas ao Orçamento pela Oposição e na votação final global o Orçamento será aprovado com o voto contra dos partidos que apoiam o Governo. Como diria o saudoso Fernando Pessa, “e esta hein?”

Andam todos interessados (e bem) com os cenários do que pode acontecer ao Orçamento: acordo com PS, acordo com CHEGA, aprovação sem acordo, rejeição do Orçamento.

Mas ninguém analisou a hipótese que vou referir, que é totalmente original no constitucionalismo atual e pode gerar uma situação kafkiana.

Em resumo: a hipótese é que na votação inicial na generalidade o PS ou o CHEGA viabilizem a passagem do Orçamento à discussão na especialidade, depois são aprovadas alterações profundas ao Orçamento pela Oposição e na votação final global o Orçamento será aprovado com o voto contra dos partidos que apoiam o Governo.

Como diria o saudoso Fernando Pessa, “e esta hein?”. Vamos lá então a isso.

AD – VOTAR CONTRA O ORÇAMENTO?

Pode, pois, acontecer que seja aprovado um Orçamento para 2025 com o voto contra do PSD e CDS.

Perante isto, a AD fica numa situação de tipo kafkiano: ou aceita governar a concretizar as prioridades da Oposição ou demite-se e corre o risco dos eleitores a responsabilizarem por eleições antecipadas que supostamente não desejam.

Quando tive esta anagnórise, lembrei-me que o Professor Tiago Duarte – que foi meu estagiário, depois sócio e sempre amigo - abordara este tema na sua tese de doutoramento (“A lei por detrás do orçamento: a questão constitucional da lei do orçamento").

Tiago Duarte, em 2006, concluiu cientificamente que (i) apesar se não aplicar a “Lei Travão” na votação do Orçamento, e de (ii) os deputados poderem livremente fazer votar alterações ao Orçamento na especialidade, seria inconstitucional “desvirtuar” o Orçamento obrigando o Governo a aplicar o que não corresponde à sua estratégia.

Por isso telefonei-lhe e soube que aparentemente a doutrina e a jurisprudência posterior não analisaram o assunto, pelo que não há precedentes que nos possam guiar.

Juridicamente, a fronteira entre alterações aprovadas na especialidade admissíveis e inadmissíveis por desvirtuarem o Orçamento é sempre discutível, mesmo que a tese do Professor Tiago Duarte prevaleça. E deverá ser o Tribunal Constitucional a definir em abstrato e no caso concreto a solução.

Mas isso só ocorrerá se o Presidente da República suscitar a fiscalização preventiva da Lei do Orçamento, o que nunca aconteceu. E, se o não fizer, a fiscalização sucessiva não impede a entrada em vigor do Orçamento e a decisão demorará meses, tornando-a (quase) irrelevante no caso concreto.

Dir-me-ão que a viabilidade disto acontecer depende de o PS e o CHEGA aprovarem alterações em conjunto ou de o CHEGA se abster em propostas que a Esquerda unida proponha. E alguns dirão que isso não faz qualquer sentido.

Não fará. Mas já fez: há meses aprovaram, contra o Governo, uma modelação diferente da redução do IRS, o fim das portagens nas autoestradas no interior, a redução do valor de rendas no IRS e do IVA na eletricidade.

Como se dizia antigamente, “a ocasião faz o ladrão”, nenhum quer eleições e ambos têm medo de ser culpados pelos eleitores pela sua antecipação.

Nada melhor do que tentar passar para o PSD a culpa, ainda mais se por causa disso não se concretizarem muitas centenas de euros de benesses votadas pelo PS e CHEGA como se não houvesse amanhã.

Em resumo: talvez o PSD deva pensar duas vezes e tentar ainda mais um acordo antes da votação inicial do Orçamento.

PROPOSTA PARA SALVAR A FLORESTA (EPISÓDIO 2)

Enquanto aguardamos o desfecho da telenovela do Orçamento, olhemos de novo para o filme trágico dos incêndios.

O meu programa “Salvar a Floresta?”, da semana passada, produziu muitas reações, e agradeço aos que me escreveram ou me interpelaram em encontros ocasionais.

Lembremos o que defendi: ou se opta pela resignação de deixar arder e tentar minorar com alguns paliativos, umas pitadas de pedagogia e milhões de litros de água, tudo enrolado em muito dinheiro, ou há que ter a coragem de agir e arriscar as críticas.

O que proponho é:

a) Tratar a floresta como atividade produtiva empresarial e regulá-la;

b) Exigir dimensão mínima de viabilidade para permitir a sua exploração empresarial privada ou social;

c) Obrigar quem exerça tal atividade a planos concretizados anualmente de limpeza e controlo de riscos, com penalidades;

d) Se após um (curto) período determinado não for feito o que se exige, o Estado deveria apresentar uma proposta de aquisição geral de terrenos nessas situações com base em preços que correspondam a valores justos de mercado, assumindo nenhuma construção adicional e proibindo-a no futuro;

e) Para quem (i) não venda ao Estado, (ii) se não associe para obter assim a dimensão mínima exigida, (iii) não opte por vender a entidades que assegurem a dimensão mínima, e (iv) para terrenos cujos proprietários se não conheçam ou se não identifiquem, o Estado deve expropriar o que exista através de um sistema que seja rápido e eficaz;

f) Depois disso, o Estado deve abrir concursos para concessionar lotes desses terrenos com dimensão económica que os torne viáveis para exploração florestal;

g) Finalmente o Estado deve subsidiar a fundo perdido, parte das despesas de limpeza dos terrenos.

Recebi críticas (que o Estado é pior que os privados, que eu defendo o confisco, que seria melhor o Estado fazer as limpezas e assumir os seus custos, etc.), mas sobretudo aplausos e nalguns casos sugestões que seriam úteis (e algumas me convenceram) se um dia o sistema político ganhasse coragem para enfrentar o problema.

Continuo a não acreditar, mas creio que vale a pena voltar rapidamente ao tema.

FLORESTA: SALVA EM 2042?

No passado sábado o Diário de Notícias publicou um excelente trabalho de Rui Miguel Godinho que entre outras aspetos revela:

a) “Mais de metade do país tem terras sem dono conhecido”, é o título do texto;

b) Mais de metade dos concelhos metropolitanos (153 em 278) não têm ainda registo cadastral dos seus terrenos, situando-se isso sobretudo a Norte e Interior onde predomina o minifúndio;

c) Além da Grécia, Portugal será o único país da União Europeia sem cadastro geral;

d) Por razões burocráticas, nenhuma informação do sistema de informação cadastral simplificado do Balcão Único do Prédio (BUPi), bem implementado a Norte, de adesão voluntária dos municípios e gratuito, até agora serviu para efetuar ou atualizar o cadastro;

e) Já existe desde 2023 legislação que permite ao Estado em 2026 e em “áreas territoriais prioritárias de intervenção” tomar o controlo de “terras de ninguém”, de que se não sabe quem são os donos por ninguém as ter reclamado.

O caso desses “prédios sem dono conhecido” é muito curioso. Desde 1966 que o Código Civil (art. 1345) refere que “as coisas imóveis sem dono conhecido consideram-se do património do Estado”.

E desde o Decreto-lei n.º 15/2019 de 21 de janeiro permite-se, após um processo complexo, o registo provisório por natureza durante 15 anos de tais terrenos como adquiridos a favor do Estado, findo os quais o registo se torna definitivo.

Passado cinco anos, o Público afirmou este ano em janeiro que “o diploma ainda não entrou em operação”. E realmente parece que só quando em finais de 2025 terminar o processo do BUPi o Estado pretende começar a concretizar o diploma. Ou seja, na melhor das hipóteses temos isso terminado em 2042… se ainda sobrar alguma floresta.

Não é de admirar que o DN refira uma “situação de faroeste”. E, sem dúvida, fiquei muito mais convencido da justeza e necessidade do que propus.

LIXO E VINHO: PERGUNTAS COM RESPOSTAS

Fico contente que algumas perguntas que aqui vou fazendo, muitas vezes enviadas por cidadãos que nem conheço, comecem a ter respostas.

É o caso do anúncio de uma ambiciosa estratégia de Carlos Moedas (comparável ao que lembrou que está a fazer com a Habitação) de tornar Lisboa mais limpa e para isso consignar o aumento da taxa turística.

E é também o caso – ontem anunciado pelo Público – de que finalmente a Autoridade Tributária (ATA) vai colaborar com o Instituto da Vinha e do Vinho (IVV) e com as Comissões de Viticultura Regionais (CVR) para controlar as entradas de vinho a granel nas regiões de onde sai – dizem-me que muitas vezes – como vinho local.

No mesmo sentido se vai agir na Região Demarcada do Douro (incluindo a exclusividade de usar uvas da região para vinificar). E, o que eu disse ser essencial, vão haver novas regras de rotulagem para não andarmos a beber vinho de todo o Mundo julgando que é português.

Continuem, por favor, a mandar-me perguntas (como aconteceu nestes casos) pois eu adoro ser um arauto ou amplificador de sons…

O ELOGIO

A Luís Montenegro, pela unidade nacional que conseguiu para a sua escolha do novo PGR, pela gestão de expetativas, pelo Acordo de Rendimentos e Preços hoje aprovado, e pelo modo como montou uma estratégia serena para enfrentar o (aparentemente) insolúvel problema da aprovação do Orçamento.

Quem tivesse dúvidas perdê-las-ia se relesse em fita do tempo o que André Ventura vai dizendo em contradições sucessivas, e sobretudo, ouçam PNS a declarar (com entusiasmo e levando ao rubro os militantes em congresso regional nos Açores) “prefiro perder eleições do que abdicar das nossas convicções”.

É realmente obra conseguir que o líder da oposição ofereça de borla o slogan para a campanha eleitoral do Governo…

LER É O MELHOR REMÉDIO

“Chiquinho” (Caminho), de Baltasar Lopes, reeditado agora, é um livro seminal da literatura Cabo-verdiana. De 1947 até hoje mantém a frescura que a qualidade permite.

“Visitar Amigos” (D. Quixote) é uma belíssima recolha de contos de Luísa Costa Gomes, acabada de sair. Já li o primeiro (“Ditadura do Proletariado”) e ganhei apetite para os outros.

Leiam que a Cultura de Língua Portuguesa agradece.

A PERGUNTA SEM RESPOSTA

Ontem na Gulbenkian, apresentação da reedição do livro com a entrevista em 3 volumes de Maria João Avillez a Mário Soares há quase 30 anos.

Há muito anos que não assistia a um momento tão sublime sobre uma figura política e Mário Soares é o “colosso” da 3ª República.

Fiquem os nomes dos oradores, todos magníficos: Duarte Azinheira, José Manuel dos Santos, João Soares, Teresa Patrício de Gouveia, Marcelo Rebelo de Sousa.

E as perguntas: como é possível que tudo o que vai ficar disso nos media seja uma mensagem sibilina do Presidente da República para o líder do PS? E que não tenha sido transmitido (segundo creio) o que foi uma notável lição da nossa História Contemporânea?

Ao menos, parece que a Gulbenkian tem tudo gravado e pode assim ser divulgado.

A LOUCURA MANSA

A CLIM��XIMO borrou muralhas do Castelo de S. Jorge com tinta vermelha, tendo uma bióloga ligada a esta associação de vândalos que me lembra os talibãs, afirmado para o justificar que “os castelos são algo que todas as pessoas querem preservar, mas de que servem monumentos históricos, se permitirmos que a humanidade passe à história?”

Curiosamente, com exceção da SIC Notícias e da NiT – New in Town (que falaram em “vandalismo”, honra lhes seja) os media portugueses optaram pelo neutro “pintam Castelo de S. Jorge” em notícias que assumem como natural este tipo de ações.

A loucura é infelizmente muito mais dos media (objetivamente cúmplices) do que dos vândalos.

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