www.sabado.ptBruno Nogueira - 1 out. 01:09

Um corpo sem nome

Um corpo sem nome

Opinião de Bruno Nogueira

A PRIMEIRA IMAGEM que vem à cabeça quando pensamos em violência doméstica é a imagem de um agressor a chegar a casa, um homem a salivar, a levantar a mão até dar cabo de tudo o que apanha pela frente; mas a realidade é muito mais complexa. A violência doméstica vai muito para além de uma casa. Começa no silêncio, nos intervalos das coisas que não queremos ver.

Como é que se acorda de manhã e se escolhe a roupa, se faz o café, sabendo que à noite o mundo vai desabar outra vez? Porque o corpo, depois de passar por tanto, aprende a não reagir. Aprende a ser uma extensão da casa. Transforma-se num móvel, numa cadeira que fica num canto porque tem uma perna partida. E os móveis não reclamam. Mas há uma dor que se vê no corpo. Não nos olhos, porque os olhos mentem – e aprende-se a mentir com tanta facilidade. É preciso, para sobreviver, aprender a mentir com os olhos. Os olhos de quem sofre estão sempre baixos, mas há qualquer coisa nos gestos que os trai, como se fosse o corpo a fugir da cabeça para pedir ajuda. A forma como aquela mulher hesita, como se cada movimento fosse pensado, medido, e fosse agora um reflexo do muito que já sofreu. Como se o corpo soubesse de antemão o que outro corpo é capaz de fazer. Tento – mas não consigo – imaginar o medo. O medo não se imagina. O medo ou se sente, ou não se entende.

Há algo de monstruoso em perceber que somos impotentes diante da dor dos outros. Que nos limitamos a observar ao longe, na esperança de que não seja o que parece ser. A dor também está no silêncio a que nos habituámos, como se o problema dos outros fosse só problema dos outros. A indiferença de quem sabe e cala é uma forma ainda mais profunda de violência. A comunidade tem uma responsabilidade, porque a violência não é um problema individual, é um problema colectivo. A vergonha que envolve o tema não é só das vítimas, é também nossa, é uma vergonha partilhada por todos nós que, de uma forma ou de outra, pactuamos com a ideia de que as coisas acontecem dentro das casas e que, por isso mesmo, é um problema exclusivo de quem vive dentro delas.

Juan Cavia

Toda a gente tem uma opinião quando sabe de um caso destes. Que se devia denunciar, que os tribunais deviam funcionar, que a polícia devia intervir. “Se fosse comigo já o tinha denunciado há muito”, dizem, com aquela convicção de quem nunca esteve lá. Na teoria somos todos heróis de causas justas, mas na prática a coisa é bem mais complicada. A justiça, claro, tem de funcionar. Mas a justiça não começa nos tribunais. Começa nas conversas de café, nas escolas, nas casas dos amigos, nas mesas de jantar onde se educam os filhos. A justiça é desmantelar todas as estruturas que permitem que se chegue a pensar que é possível dominar outro ser humano. O mais cruel na violência doméstica não é apenas o que se faz, é o que se desfaz. Desfaz-se uma pessoa aos poucos, como se fosse um cigarro aceso, que vai ficando cinza, só com o vento. Dá-se tanta pancada numa pessoa que ela esvazia. “Porque é que ela não acaba a relação? Porque é que ela não foge? Como é que ela atura isto? Porque é que ela não sai?” Porque já não há nada para sair. Aquela pessoa já não é mais ela. Está ali, levanta-se e sorri, mas não é ela. A violência doméstica não destrói só o corpo, destrói a noção de que podemos ser livres. Fica-se a achar que não se merece melhor, que se calhar amanhã vai ficar tudo bem, que se ele bate é porque ainda sente qualquer coisa. A violência doméstica destrói o Norte e o Sul, destrói a coerência, o amor próprio, o corpo, os filhos, os pais, destrói tudo por onde passa. A vítima sofre em casa e sofre fora dela, a ver casos em que alguém fez queixa e não ligaram, mulheres que voltam para trás e depois são espancadas até à morte, e aí sim, é preciso intervir, porque uma morte não se deixa sem amparo. Uma vítima de violência doméstica só passa a ter nome quando morre. Até lá é um problema que se vê ao longe, uma queixa que não deu em nada, um papel no meio de uma pilha de burocracia, um corpo dorido que serve para absorver a fúria do outro. A crueldade é isso: a capacidade de um ser humano transformar o outro num espelho da sua violência. O que é preciso é que esta coisa nos doa também a nós. O que é preciso é que deixemos de conseguir dormir à noite. Não é uma questão de “ter pena” da vítima, mas de reconhecer que, enquanto humanos, temos a responsabilidade de cuidar uns dos outros.

Enquanto continuarmos a tratar a violência doméstica como algo de outros, algo distante, continuaremos a ser parte do problema. E não há mal maior do que uma sociedade que aprendeu a conviver com a sua própria vergonha.

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

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