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Como os trabalhadores migrantes sofreram para criar a etiqueta de luxo “made in Italy”

Como os trabalhadores migrantes sofreram para criar a etiqueta de luxo “made in Italy”

Abbas, de 32 anos, que era soldador no Paquistão e chegou a Itália através dos Balcãs em 2015, chegou a trabalhar 14 horas por dia no fabrico de malas e acessórios de couro para marcas de luxo.

Made in Italy: shame in Italy” (“feito em Itália, vergonha em Itália”), gritavam na semana passada, em Genebra, um punhado de trabalhadores migrantes vindos da Toscana, a famosa região de artigos de couro de Itália, à porta da principal loja do fabricante de acessórios de luxo Montblanc, segurando cartazes com o slogan.

A cerca de três quilómetros do local onde a empresa-mãe da Montblanc, a Richemont, com uma fortuna de 76 mil milhões de dólares (68 mil milhões de euros), se reunia com os accionistas, os trabalhadores — ladeados por mais de uma dúzia de sindicalistas italianos e suíços — acusaram o fabricante de canetas e relógios de ter abandonado o seu fornecedor Z Production no ano passado devido ao aumento dos custos.

A empresa chinesa, sediada na Toscana, tinha melhorado as suas condições de trabalho em Outubro de 2022, após anos de contratos irregulares e turnos longos, justificaram à Reuters trabalhadores e dirigentes sindicais.

“A Montblanc terminou o contrato porque queríamos trabalhar oito horas por dia, cinco dias por semana, como trabalhadores legais”, queixou-se Zain Ali, de 23 anos, do Paquistão. Trabalhou para a Z Production durante dois anos e meio, aplicando logótipos metálicos da Montblanc em acessórios de couro: “Eles só queriam escravos”.

A Z Production não respondeu a um pedido de comentário para esta história. A Montblanc disse, numa declaração à Reuters, que decidiu rescindir o contrato com a Z Production no início de 2023 porque as auditorias mostraram que o empreiteiro não tinha cumprido as suas normas, tal como previsto no código de conduta da Richemont para os fornecedores. Este ano, as investigações do Ministério Público revelaram condições semelhantes às da mesma fábrica em 16 oficinas perto da capital italiana da moda, Milão, que fabricavam produtos para as marcas de luxo Dior, Giorgio Armani e Alviero Martini, de acordo com documentos judiciais analisados pela Reuters.

A Reuters falou com sete trabalhadores da cadeia de abastecimento de luxo e três líderes sindicais, bem como com várias organizações sem fins lucrativos, funcionários locais e actores da indústria, que afirmaram que estas duras condições de trabalho eram também uma característica da cadeia de abastecimento de luxo na Toscana.

A Z Production e outras oficinas empregavam imigrantes sem documentos e sem experiência prévia no fabrico de peles para produzir produtos de luxo para a Montblanc e outras marcas de topo, indicando que os problemas da cadeia de abastecimento se estendem para além de Milão.

Alessandro Lessi, 53 anos, que trabalhou na Z Production como entregador até 2022, contou que, como o único italiano na grande oficina, tinha um contrato regular, mas os trabalhadores migrantes trabalhavam longas horas.

“Eu saía às 18h, mas todos os outros ficavam”, confessou à Reuters, referindo que a maioria dos trabalhadores eram oriundos da China, do Paquistão ou do Bangladesh, uma vez que a empresa procurava reduzir os custos. “É muito comum aqui na Toscana. São as grandes marcas que impõem os preços aos fabricantes”. O tribunal de Milão colocou a Alviero Martini Spa, o braço industrial da Armani, a Giorgio Armani Operations, e a Manufactures Dior em Itália sob administração judicial, respectivamente em Janeiro, Abril e Junho, por um período de um ano.

Depois disso, os juízes verificarão se as empresas corrigiram as falhas e tomaram medidas para evitar a repetição dos problemas laborais, de acordo com os documentos do tribunal e fontes judiciais.

Em Julho, a empresa-mãe da Dior, a LVMH, declarou que tencionava reforçar as auditorias e os controlos da cadeia de abastecimento e que a Dior assumiria um controlo mais directo da sua produção.

Em Abril, o grupo Armani afirmou que “sempre teve medidas de controlo e prevenção para minimizar os abusos na cadeia de abastecimento”. A Alviero Martini afirmou este mês que não tinha conhecimento da subcontratação não autorizada e da exploração dos trabalhadores. Os procuradores italianos estão agora a investigar as cadeias de fornecimento de cerca de uma dúzia de outras marcas de moda, sem identificar as etiquetas em questão porque o caso ainda está em curso.

Foto Trabalhador carrega rosas para perfumes da Dior no sul de França REUTERS/Eric Gaillard O segredo sujo do luxo

A procura de artigos raros e exclusivos por parte dos consumidores ajudou a transformar a LVMH numa das maiores empresas europeias, com uma capitalização na bolsa de mais de 300 mil milhões de euros, liderando a rápida expansão do sector do luxo.

As marcas dependem de uma cadeia de fabricantes e subfabricantes para acelerar a produção quando a procura é elevada ou para reduzir rapidamente a capacidade quando, como actualmente, esta diminui.

Falando na presença de um delegado sindical no centro têxtil de Prato, na Toscana, Abbas e Arslan Muhammad, que chegaram do Paquistão como imigrantes sem documentos, disseram que trabalharam durante anos ao lado de dezenas de imigrantes em oficinas que fornecem marcas de luxo.

Abbas, de 32 anos, que era soldador no Paquistão e chegou a Itália através dos Balcãs em 2015, contou que começou numa oficina gerida por chineses em Incisa Valdarno, um conhecido distrito de trabalho em couro perto de Florença, sem ter uma autorização de trabalho.

“Para o meu tipo de trabalho, tinha de estar de pé durante 14 horas, a trabalhar de pé”, detalhou Abbas, que disse ter trabalhado ao lado de cerca de 50 imigrantes paquistaneses, afegãos e chineses, no fabrico de malas e acessórios de couro para marcas de luxo internacionais. Recusou-se a identificar a oficina por receio de represálias.

A sua tarefa consistia em tingir o couro das malas fabricadas em diferentes unidades de produção, uma habilidade que aprendeu depois de ter vindo para Itália.

“As minhas pernas doíam-me tanto que não conseguia dormir à noite. Já não conseguia ir à casa de banho, nem sentar-me”, queixou-se Abbas, que se recusou a revelar o seu nome completo ou a dar pormenores sobre o seu actual empregador por receio de perder o posto de trabalho.

Abbas disse à Reuters que ganhava entre 600 e 700 euros por mês com um contrato a tempo parcial, e entre 400 e 500 euros em dinheiro por horas adicionais. Francesca Ciuffi, funcionária do sindicato SUDD Cobas que ajudou a organizar o protesto de Genebra, declarou que tais práticas ainda são comuns nas oficinas de Prato.

Devido aos seus problemas de saúde, Abbas foi despedido do primeiro emprego, mas encontrou trabalho em 2019 na mesma indústria em Prato.

Durante mais três anos, as condições de trabalho foram semelhantes às registadas na primeira fábrica. Mas em 2022, com a ajuda do SUDD Cobas, Abbas e os colegas conseguiram assegurar um contrato regular de 1400 euros por mês.

Arslan, um migrante paquistanês de 27 anos que trabalha para a Z Production, relatou que trabalhou muitas horas depois de chegar a Itália em 2017. “Quando se trabalha mais de 12 horas por dia durante seis dias por semana, nem sequer se tem tempo para fazer compras, nem para lavar a roupa”.

Inicialmente, trabalhava sem contrato e depois foi-lhe dado um contrato a tempo parcial. Tal como Abbas, acabou por obter ajuda do sindicato e conseguiu um contrato adequado em 2022 com a Z Production, disse à Reuters.

Foto Protesto dos trabalhadores da Z Production REUTERS/Denis Balibouse Práticas ilegais expostas

De acordo com os documentos do tribunal de Milão, as marcas de luxo normalmente entregam a produção dos seus modelos a um subcontratante principal, mas essa empresa pode ser pouco mais do que uma fachada, capaz de produzir amostras, mas com pouca capacidade de fabrico.

O trabalho real será feito por outra oficina, onde os custos são baixos e os controlos das condições e do tratamento dos trabalhadores praticamente inexistentes.

“No decurso dos inquéritos, a ilegalidade foi de tal forma comprovada e enraizada que pode ser vista como parte de um modelo empresarial mais vasto, exclusivamente orientado para o aumento do lucro”, escreveram os procuradores de Milão em Junho, nos documentos relativos ao caso Dior.

Manter o controlo sobre o que acontece no interior da cadeia de abastecimento do luxo em Itália é um desafio. De acordo com a consultora Bain, o país representa entre 50% e 55% da produção mundial de bens de luxo.

“Uma marca média tem 7000 fornecedores”, afirma Carlo Capasa, presidente do grupo de lobby das marcas de moda italianas, Camera Nazionale della Moda Italiana. “Se cada fornecedor tiver dois subfornecedores, são provavelmente mais 14.000. Quero ver quem consegue fazer 21.000 auditorias por ano... É impossível, por isso é evidente que alguém escapa (aos controlos)”.

As rusgas levadas a cabo pelos Carabinieri italianos em oficinas colocaram os empreiteiros em alerta, disse uma fonte judicial à Reuters, que não quis ser identificada porque o caso está em curso: as inspecções durante o verão mostram que os fabricantes estão a pôr a casa em ordem, pelo menos no interior de Milão.

Uma fonte de investigação de topo disse à Reuters que alguns fornecedores começaram a deslocar a produção para áreas como Veneto, Campânia e Apúlia, que não estão actualmente no centro das rusgas.

Antonio Franceschini, do grupo de pressão italiano CNA Federmoda, que representa os artesãos e as pequenas empresas de moda, disse que, no mundo cruel do luxo, contratar o pessoal e respeitar as normas ambientais tem inevitavelmente um preço. O pessoal mal pago e as condições de trabalho insalubres permitiram, por exemplo, que a Pelletteria Elisabetta Yang Srl, contratada pela Dior, cobrasse à marca de luxo apenas 53 euros por mala, segundo os documentos do tribunal, contra um preço de retalho de 2600 euros, segundo os documentos do tribunal de Milão.

A Dior disse que cortou relações com o fornecedor, que estava a montar apenas parcialmente as malas.

Uma fábrica que se oferece para fazer trabalhos para produtos caros a preços muito baixos, como as que foram expostas pelas inspecções do Ministério Público de Milão, deve, no entanto, ser um sinal de alerta para as grandes marcas, uma vez que o risco de abuso dos direitos dos trabalhadores aumenta à medida que os custos de produção diminuem, alertam os especialistas do sector. “Os custos de remuneração do trabalho não podem descer abaixo de certos níveis”, disse Franceschini.

Reportagem de Silvia Ognibene, em Florença: Redacção de Keith Weir; Edição de Lisa Jucca

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