visao.pt - 18 set. 11:06
Visão | Agualusa, no Reino do Bailundo
Visão | Agualusa, no Reino do Bailundo
Tem percorrido, com os seus romances, partes significativas da geografia e do passado do seu país, contribuindo para a construção de uma identidade coletiva de Angola. Estreia-se agora num novo território da região, o planalto central, espaço mítico e de reinos antiquíssimos ainda hoje existentes. É aí que história e ficção se entrelaçam numa reflexão sobre a ideia de pertença, de raça e de religião, assente em personagens com múltiplas camadas. Editado pela Quetzal, Mestre dos Batuques marca o regresso ao romance de um dos grandes nomes da literatura em língua portuguesa, com obra consagrada e premiada no universo da lusofonia e não só. Antecipando a chegada do livro às livrarias no próximo dia 26, o JL entrevista o escritor
Junto à montanha de Halavala, no planalto central de Angola, um pelotão militar português aí acampado é encontrado morto. Mas à volta não é encontrado qualquer indício de ataque, de revolta, de crime. O mistério, tão denso quanto o silêncio que envolve cada soldado, tem de ser desfeito, sob pena de se revelar a fraca ocupação colonial portuguesa no país. Estamos em 1902 e no início de uma viagem narrativa que nos transporta até ao que se viveu naquele tempo, entre a realidade e a ficção, entre factos que podiam ser reais e imaginações bem documentadas. Falamos de Mestre dos Batuques, o novo romance de José Eduardo Agualusa, que continua a mapear, em romance, a história recente ou mais antiga do seu país. Neste caso, uma missão militar destapa uma outra história de Angola, uma outra ocupação do território, outros protagonistas que também definiram o curso de tudo o que estava em jogo naquela região. Pelo meio, uma história de amor e de autodescoberta, pessoal e coletiva.
Nascido em 1960, no Huambo, José Eduardo Agualusa estreou-se, em 1989, com A Conjura, logo distinguido com o Prémio Revelação Sonangol. Seguiram-se muitos outros romances, volumes de contos e poemas, biografias e livros de crónicas, como Nação Crioula (Grande Prémio Literário RTP, Fronteiras Perdidas (Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco), O Vendedor de Passados, As Mulheres do Meu Pai, Teoria Geral do Esquecimento (Prémio Fernando Namora e Prémio Literário Internacional IMPAC de Dublin) ou A Rainha Ginga. Com uma vasta obra também no cinema assina o guião de dois filmes a estrear em outubro, Sobreviventes, de José Barahona, a 3 de outubro, e Os Papéis do Inglês, de Sérgio Graciano, a partir da oba de Rui Duarte de Carvalho, a 24 de outubro.
Jornal de Letras: A ficção continua a ser a melhor forma de revelar outros tempos e geografias de Angola?
José Eduardo Agualusa: Sim. Eu estreei-me com um romance histórico, há mais de 30 anos, precisamente porque achava que através do romance histórico era possível refletir e discutir questões que tinham que ver com a formação de Angola e que, de certa forma, explicam situações que aconteceram depois, como é o caso da Guerra Civil. Este livro não exatamente um romance histórico – é outra coisa, quanto muito um falso romance histórico, mas também vou atrás da História para para tentar compreender e discutir o presente.
Parece que cada região de Angola, um país enorme, tem as suas histórias, os seus nós, os seus encontros, todos muito parecidos, todos os diferentes.
É verdade. E esta é a primeira vez que escrevo um romance que em grande parte se passa no planalto central de Angola, a zona onde nasci. E, sim, no contexto do processo de colonização de Angola, que é muito complexo, o que se passou no Huambo não é comparável com o que se passou em Benguela ou em Luanda,e o contrário também. São todas situações muito diferentes. Vivo agora em Moçambique e também não se pode comparar o que se viveu aqui com Angola. Quando se pensa no processo colonial, tem-se a imagem de uma conquista rápida e pacífica. Fala-se sempre nos 500 anos em que os portugueses estiveram em Angola (ou em Moçambique) e não é verdade.
Em que sentido?
A ocupação efetiva e completa do território que hoje conhecemos como Angola é muito tardia e limitada no tempo, só no século XX e até 1975. É um domínio muito breve. Isso quer dizer que as populações do planalto central de Angola estiveram sob domínio colonial português durante muito pouco tempo.
Ao passar-se sobretudo no final do século XIX e inícios do XX, o romance capta essa ocupação ainda frágil.
Interessa-me mostrar que, neste processo, os africanos também participam de uma forma ativa, não são agente passivos. Têm os seus próprios interesses. Se é certo que esse processo colonial foi feito de uma forma violenta, na maior parte das vezes foi negociado, cada parte defendia o seu interesse económico. Esses interesses também estavam presentes nos poderes locais do planalto central de Angola. No romance tento mostrar essa dinâmica.
O Reino do Bailundo, onde decorre o romance, tem uma dimensão histórica e mítica forte no imaginário angolano?
De certo forma, sim. Ainda hoje existe e é reconhecido pelo Estado angolano. Tem, por isso, uma presença relevante até hoje. E o Reino do Bailundo é importante porque está no coração da origem da UNITA. E a formação da UNITA é completamente diferente, em termos culturais e conceptuais, representa de facto interesses distintos dos do MPLA. A UNITA existe por causa da realidade concreta do Reino do Bailundo e do que foi o processo colonial português naquela região. Luanda teve efetivamente uma colonização portuguesa muito prolongada que deu origem a uma cultura muito integrada e mestiça, com elementos portugueses e africanos e com a predominância da religião católica. No planalto não foi assim, notando-se mais a influência das missões protestantes de língua inglesa, com um processo mental completamente diferente e com uma influência nativa muito mais forte.
Diz no fim do romance que este lhe surgiu num clarão. Que imagem ou ideia surgiu em primeiro lugar?
Nos meus trabalhos anteriores, parti quase sempre de uma ideia muito vaga: um homem que vendia passados aos novos ricos, em O Vendedor de Passados, ou uma mulher fechada num apartamento em Luanda, em Teoria Geral do Esquecimento. A história só a descobri depois. Neste caso foi diferente. Estava em Portugal, numa viagem entre Porto e Braga, se não me engano, e de repente a história caiu-me no colo. É claro que surgiu porque eu tinha estado, nos meses anteriores, lendo tudo o que tivesse que ver com a História do Bailundo por causa do livro anterior, Vidas e Mortes de Abel Chivukuvuku. Por um lado, estava muito imerso naquele universo. E, por outro, também andava a ler o fenómeno das drogas digitais ou sonoras. E tudo se misturou naturalmente, o que fez com que começasse a escrever com uma ideia muito mais sólida.
Essas muitas leituras que fez estão presentes nos apartes da narradora (colocados entre parênteses retos) que abordam aspetos antropológicos e citam vários viajantes. O que o interessou nesse diálogo?
A história é contada por uma mulher que está no presente, nos dias de hoje, que tem de certa forma um interesse grande no que está a ser contado. E, como ela, também fiquei fascinado com alguns testemunhos curiosíssimos que fui encontrando. Custa deixar de fora. O sentimento é: tenho de partilhar isto, pois é tão bom e bonito. Estas notas são a partilha de um deslumbre com livros reais.
Algumas dessas notas parecem bem certeiras nas observações que fazem.
Sim. O que procurei aqui, como em outros livros meus, foi partilhar o lado menos conhecido e mais capaz de desmontar as narrativas oficiais, aqueles testemunhos que de repente dinamitam todas as convenções e ideias feitas.
Jan Pinto também é uma dessas personagens que dinamitam convenções…
Ele é uma ponte entre o mundo europeu e o africano mais profundo e por isso mesmo mais difícil de compreender, no sentido em que não é tão conhecido fora de Angola. É filho de um colono português e de uma mulher bóer, mas nasce e cresce no contexto do planalto central. É uma personagem interessante porque vive dividido e meio perdido. Não é um herói clássico, antes alguém apanhado pela história. Mas faz esse papel de ligar dois mundos.
A História de Angola, para o bem e para o mal, também se fez de pessoas como esta personagem, longe do herói de causas bem definidas?
Sim, sim. Aliás, estas personagens às vezes têm mais importância do que as outras, até porque provavelmente são em maior número. A maioria das pessoas não tem convicções muito profundas. Tivemos isso em Angola, com muitos angolanos a combater nas tropas portuguesas e, depois da Independência, a juntarem-se às novas forças do país. As pessoas são resultado de uma série de situações e acontecimentos. São poucos os que se rebelam contra os movimentos da História.
Conhecemos Jan Pinto também pela história da sua família. Esse tempo longo também ajuda a mostrar as vicissitudes do processo colonial angolano?
Houve a procura de tempo longo, sim. Porque os processos coloniais são sempre processos complexos, feitos por pessoas, que não são lineares, antes complexas, não são uma coisa só, defendendo interesses muitos distintos. É uma multiplicidade que também me interessa trabalhar.
Não concebe a sua literatura sem pessoas com dúvidas, hesitações, heterodoxias?
As personagens mais estimulantes, reais, genuínas e autênticas, são essas, as que têm dúvidas e que às vezes podem fazer atos heroicos, mas não são super-heróis. Aliás, nunca gostei de super-heróis, até hoje. Gosto de pessoas. E escrevo para as compreender, incluindo nas suas debilidades e fragilidades.
No romance, há muitos elementos que uma mente mais racionalista facilmente associaria à magia ou ao realismo mágico. É inevitável convocar esse universo quando estava a falar de certas regiões de Angola?
Obviamente que estas culturas mais antigas de Angola têm uma ligação com o universo mágico. Também é verdade que aquilo a que chamamos mágico são as tecnologias que não conseguimos explicar. Se chegássemos ao século XIX com um iPhone na mão, esse objeto seria considerado mágico. E o romance também debate a questão das tecnologias apropriadas para cada situação, que os portugueses também enfrentaram em África. Mas além disso, é claro que há todo um universo mental, de ligação à natureza, que está presente de uma forma muito mais viva nas zonas rurais de Angola.
E com uma ligação mais forte também à música?
A música sempre esteve ligada à magia, tal como a palavra e a poesia. Num livro anterior, Os Vivos e os Outros, parte da primeira frase da Bíblia – “No princípio era o Verbo.” – que é pura magia: a realidade criada através da palavra.
O romance aborda muito as questões da identidade, sobretudo as que envolvem a raça e a religião. Uma temática muito atual…
As questões identitárias são muito relevantes em todos os países jovens. E as literaturas desses países refletem esse interesse. Mas, curiosamente, na Europa essas questões, também por questões migratórias, passaram a estar na ordem do dia. Veja-se o caso da Inglaterra, que tem uma enorme percentagem de habitantes oriundos de outros países, o que depois tem um impacto muito grande na literatura, na música, no cinema. No caso de Angola, as questões identitárias são discutidas desde antes da Independência. Aliás, acredito que esse debate é mais forte e premente na Europa, incluindo Portugal, do que Angola, que tem esse assunto mais apaziguado.
E vê neste romance outras temáticas que rimam com a atualidade angolana?
Não foi isso que me moveu. O desejo maior foi contar um pouco da História de Angola afastando-me de Luanda, da capital. É um outro olhar, que também esteve presente na biografia que fiz de Abel Chivukuvuku. Na verdade, não falta matéria para muitos outros romances. Temos muito passado à nossa frente. E isso é muito apelativo para qualquer escritor. Nesse sentido, pode ser que regresse a outro tempo histórico. Tenho romances passados no século XVII, XIX e XX. Falta-me o século XVIII [risos].
Estamos a caminho dos 50 anos da Independência de Angola. Podemos dizer que nesse período a literatura desempenhou um papel fundamental na construção da identidade angolana?
Mais do que isso. É sempre bom lembrar que todo o movimento independentista moderno começou com a poesia, foi antecedido e preparado por um movimento literário. Primeiro surgiram os poetas que, em muitos casos, se tornaram políticos. E foi através da poesia que acordaram as pessoas. Não por acaso, os primeiros governos pós-Independência tinham uma grande percentagem de poetas. O que não significa que tenham sido bons governantes [risos]. Não basta ser poeta para ser um bom governante, talvez até não seja a principal condição. Pergunta-se muitas vezes para que serve a poesia. E eu respondo: para criar realidade.
Para além da sua vocação, sentiu ao longo do seu percurso literário um espírito de missão, uma “obrigação” de contribuir para essa construção nacional?
Na verdade, todos os meus livros foram escritos para me compreender a mim próprio dentro do país. Agora, acredito que quando o escritor é honesto consigo próprio, quando tem a coragem de ir buscar os seus medos e inquietações mais profundos, outras pessoas se vão identificar com essas preocupações. Porque somos todos pessoas, todos muitos parecidos. Espero, por isso, que os meus livros tenham contribuído para levantar alguns debates em Angola.
Em Portugal, as comemorações dos 50 anos da Revolução do 25 de Abril ficaram marcadas pela tema das reparações às ex-colónias. Como leu as palavras do Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa?
Foi muito curioso assistir a esse debate. Porque normalmente quando se fala em reparações, em Portugal, as pessoas tendem a pensar imediatamente em dinheiro. Angola, por exemplo, tratou logo de dizer que não queria dinheiro. Mas há muitas formas de reparações. Uma delas, e bem importante, é escutar o Outro, ouvir a sua versão. Nesse sentido, a circulação dos escritores africanos em Portugal é importante e uma forma de reparação. A contribuição dos historiadores africanos para a construção dessa história comum também é importante para os dois lados. Ouvir a versão do Outro engrandece os dois lados. Também não percebo a polémica em relação ao pedir desculpa. Quando se faz uma coisa errada, pedir desculpa é um ato de nobreza, não empobrece em nada. Se houve erros e crimes no processo colonial – e ninguém duvida de que os houve, pois tudo parte de uma injustiça, alguém achar-se no direito de dominar o Outro –, é preciso reconhecê-los. E não estamos a condenar pessoas, mas o sistema. É por isso que acho que o professor Marcelo estava coberto de razão.
Como o debate sobre as estátuas no espaço público, não se trata de perceber quais temos de deitar abaixo, mas as que temos de construir ao lado para completar a história?
Nunca gostei de estátuas, sempre achei uma abordagem um pouco ridícula isto de se fazer bonecos. Se alguém quiser homenagear o Eça de Queirós, construa uma biblioteca com o seu nome. Mas, sim, concordo. O importante não é derrubar, mas contextualizar. E também temos esse problema em Angola. A estátua do Agostinho Neto também esteve envolvida em polémica. Não há dúvida de que Agostinho Neto foi uma pessoa fundamental no combate político ao poder colonial. Mas também esteve ligado aos massacres que se seguiram ao 27 de maio de 1977. Muitas das pessoas que perderam os pais nesse processo de repressão sentem-se insultados. É de tirar a estátua? Não. É preciso contextualizar, explicar naquele ou noutro espaço o percurso daquela pessoa. E isto vale para tudo. O importante é a informação