Ana Bárbara Pedrosa - 6 set. 13:23
E se fosse o teu filho?
E se fosse o teu filho?
Opinião de Ana Bárbara Pedrosa
Tenho 34 anos e nunca vomitei. Mas o que li meteu-me tanto nojo que até o estômago deu saltos. Em França, Gisele Pelicot foi vítima de no mínimo 100 violações, divididas por 80 – oitenta – homens.
Dezenas e dezenas e dezenas. Homens com filhos, homens em relações. Homens novos, homens velhos. Homens bonitos, homens feios. O que têm em comum é isto: todos homens. E todos violaram Pelicot sem que esta soubesse, tombada por comprimidos metidos à revelia nas suas refeições pelo marido, que, escroque, convidou escroques para violarem a esposa inconsciente, e depois filmou tudo. Durante anos, Gisele Pelicot nem sabia que era violada. Não é filme de terror, é vida de todos os dias, e talvez por isso seja filme de terror – filme tão absurdo, tão absurdamente exagerado, que nem na tela cabe.
Não devo conhecer uma só mulher que não tenha sofrido um episódio de violência sexual. Não são só as violações, são os abusos. O velho de 80 anos que se baba para as meninas. O ódio online, que sexualiza, como quem diz: põe-te nesse lugar de fantoche. O namorado que levanta a mão. O ex-namorado que partilha fotografias. O ex-marido que diz que ela é que é maluca, exagerada, histérica. A mão de um rebarbado que aparece num comboio. A voz que diz que faz isto e aquilo de um andaime. E, sobretudo, pasma que tudo isto exista sob a sensação da mais perfeita impunidade. Porque sim, são muitos os crimes, são muitas as humilhações, que acontecem sem punição, permitindo a tantos homens voltarem às suas vidas para cumprirem em público o papel de gente limpa. Quantos daqueles terão chegado a casa e sorrido aos filhos? Que nojo. Quantos terão deitado a cabeça sem um problema moral a impedi-los de adormecerem? Que nojo. Quantos não terão tido um centímetro de culpa? Que nojo.
Nisto, será preciso lembrar que são criminosos? Dizer isto assim, numa sociedade adoentada, vale mais do que dizer que são machistas, porque a ideia de violar a lei sabe a coisa mais asquerosa do que a de violar uma mulher. Enfim, o mais macabro dos homens assediou outras, houve uma queixa, a polícia investigou-lhe o computador, e lá estavam as provas guardadas como troféus, a imoralidade exposta como uma taça.
Neste momento, o julgamento decorre em França, e por isso o caso veio ao domínio público. Os advogados dos acusados quiseram que o julgamento fosse feito à porta fechada. Pela decência, diziam eles. E que decência pedem? A "sociedade" não deve merecer levar com isto, mas aquela mulher inanimada sim? Gisele recusou, e ainda bem: é preciso que esta gente tenha cara, e que tenha vergonha de a mostrar na rua.
Escrevo isto e o estômago mexe-se outra vez. O argumento da "decência" é uma falácia, uma estratégia cobarde para fazer com que a vergonha não mude de lado, protegendo criminosos e isolando a vítima, ocultando-a das ondas de protecção. A vergonha não está na mulher violada. Há tantos homens disponíveis a isto, sedentos por isto, que este caso o deixou claro: podia ser qualquer uma. Eu ou tu. E há tantos homens disponíveis que podia ser qualquer um. Talvez tu. Por isso, é com pasmo que se vê que a revolta pelo horror, esta revolta que vem de dentro, quase nunca vem de quem tem próstata. Dá vontade de abanar: mexam-se, caraças. E a condenação, quando existe, assenta sempre numa mulher próxima, numa mulher de alguém: e se fosse a minha mãe, a minha namorada, a minha filha? Mas não precisa de ser a tua filha, basta que às mulheres seja reconhecida a mesma dignidade, e que isto seja visto como um ataque ao mais básico do civismo e da humanidade. E isso só acontecerá quando os homens deixarem a preguiça. São os homens que têm de se envergonhar uns aos outros, é a eles que cabe dizer que não só não está tudo bem numa violação como – santo deus – está mesmo tudo mal. Cogita-se facilmente que uma filha possa ser violada, mas nunca que um filho possa ser violador. Talvez o melhor seja que o ónus mude de lado: em vez de perguntarmos "E se fosse a minha filha?", é melhor irmos ao "E se fosse um filho meu?".
Quem educa, bem o vemos, ensina às meninas estratégias para não serem violadas. "Não andes na rua à noite, tem cuidado com a bebida, não te dês com o Zé Manel." Mas ninguém diz ao Zé Manel para manter o fecho fechado a não ser que alguém o queira aberto. O caso de Gisele Pelicot parece desumano, mas não é: os números são tão avassaladores que o chocante é que isto seja feito pela nossa espécie. Ora, a nossa espécie ainda está a alguns quilómetros de distância de entender que as mulheres também são pessoas. Claro que não são todos os homens. A maioria dos homens não é isto. Mas é impossível não encarar os factos: são sempre homens. É inconcebível que o mundo seja tão desigual que não haja máximas intocáveis: não se droga uma mulher, não se viola uma mulher inanimada.
Mais crónicas do autor 06 de setembro E se fosse o teu filho?Quem educa, bem o vemos, ensina às meninas estratégias para não serem violadas. "Não andes na rua à noite, tem cuidado com a bebida, não te dês com o Zé Manel." Mas ninguém diz ao Zé Manel para manter o fecho fechado a não ser que alguém o queira aberto.
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