Ricardo Borges de Castro - 5 set. 17:47
Notas dispersas sobre o verão quente de 2024
Notas dispersas sobre o verão quente de 2024
Opinião de Ricardo Borges de Castro
Visto de Bruxelas, a "silly season" de 2024 teve muito pouco de silly. O verão foi literalmente quente, com acontecimentos inesperados e mudanças potencialmente relevantes para o futuro da União Europeia. O vento soprou em muitas direções: Biden já não é candidato a presidente dos EUA, a Ucrânia invadiu a Rússia, a situação no médio oriente agravou-se, populistas antieuropeus de direita (e esquerda) continuam a somar pontos, e alguns países membros da UE querem convencer-nos de que não têm mulheres competentes para enviar para a Comissão Europeia.
Afinal havia outra
Na véspera do sistema Copernicus para as alterações climáticas registar o dia mais quente da história recente, Joe Biden fez História ao abandonar a sua recandidatura à Casa Branca em favor da sua Vice-Presidente Kamala (lê-se Káma-lá) Harris. É verdade que foi pressionado por muitos dos seus correligionários a tomar aquela decisão. Mas, na maioria dos casos, os políticos são mais conhecidos por ficarem agarrados ao poder do que por abandoná-lo voluntariamente. Que a decisão parta daquele que se presume ser o político mais poderoso do mundo é uma lição de humildade e estadismo que não é para todos.
De uma penada, Biden mudou os cálculos e a narrativa das eleições americanas: o "velho" incoerente da corrida passou a ser Trump – um condenado pela justiça americana que tem agora pela frente alguém que se destacou como procuradora-geral da Califórnia a ir atrás de espertalhões como ele. O contraste entre Kamala e Donald não podia ser maior e o sobressalto de entusiasmo que tomou conta do partido democrata é bem preciso para tentar vencer o magnata nos chamados "swing states" que efetivamente decidem quem sai vencedor a 5 de novembro.
Para a UE, a diferença é entre ter um presidente americano que já ameaçou abandonar a OTAN e encorajou Putin a invadir os seus vizinhos ou uma aliada que afirmou no seu discurso na Convenção Democrata de Chicago que "Como presidente estarei firmemente ao lado da Ucrânia e dos aliados da OTAN." Independentemente de quem saia vitorioso, e até por uma questão geracional, não voltaremos a ter um líder americano tão pró-europeu como Biden. É, pois, importante continuarmos a preparar-nos para termos uma relação transatlântica mais equilibrada, em que os europeus assumem maiores responsabilidades especialmente no que toca à sua segurança e defesa.
Putin vai nu
Putin anda meio nu e não em cima do cavalo como gosta. A incursão das forças armadas ucranianas em Kursk e a ocupação de território russo foi um rude golpe para o colonialista do Kremlin e, aparentemente, apanhou de surpresa os apoiantes ocidentais de Kyiv. Esta iniciativa militar ucraniana de alto risco teve como destinatários tanto Moscovo como Washington e Bruxelas. Ela mostra a determinação de ferro de Zelenskyy e dos ucranianos em tudo fazer para defender o seu território e procurar uma vitória no conflito.
Se o alcance tático da operação – dando ânimo às tropas, recuperando iniciativa e contrariando as perspetivas mais negativas sobre o decorrer da guerra – é evidente, o seu significado estratégico de longo-prazo é menos claro. Poderá vir a servir de moeda de troca numas futuras negociações de paz, mas tudo depende da duração do conflito, da capacidade de Kyiv em manter aquela posição e a manutenção da defesa da frente leste, onde se registaram recentes ofensivas russas, e da resposta que Moscovo ainda não deu a este contra-ataque.
Nada disto se fará sem apoio ocidental. Com o aproximar das eleições presidenciais americanas que podem, eventualmente, levar ao fim do apoio militar norte-americano à Ucrânia, caso Donald Trump seja reeleito, parece haver uma aceleração de calendários que não será indiferente para a Europa.
Cada vez mais desorientado
Apesar dos esforços de muitos na comunidade internacional para se chegar a um cessar-fogo na faixa de Gaza, a situação no Médio Oriente tem-se agravado. O Hamas continua a deter 101 reféns e a situação humanitária é de catástrofe especialmente para todos os civis palestinianos que são apanhados pelo fogo-cruzado do grupo terrorista e do exército israelita. Precisamente por não haver qualquer equivalência moral entre uma democracia e uma organização de terror, o governo de Benjamin Netanyahu – que falhou na proteção dos seus civis a 7 de outubro – tem obrigação, na legítima defesa de Israel, de respeitar o direito internacional e humanitário. Uma democracia tem responsabilidades acrescidas.
Para mal dos nossos pecados, os países da UE continuam essencialmente divididos sobre o que fazer e como fazer, incapazes de serem parte de uma solução para o conflito. Isto afeta a credibilidade externa de Bruxelas que tão cedo não se livra da acusação de dois pesos duas medidas.
Processo de normalização em curso
O fim do verão ficou marcado pelos resultados da AfD (Alternativa para a Alemanha) nas eleições estaduais na Alemanha, vencendo na Turíngia e ficando num expressivo segundo lugar na vizinha Saxónia. Foi a primeira vez que um partido da extrema-direita radical ganhou umas eleições regionais desde a derrota dos Nazis na segunda guerra mundial. Outra formação política que cresceu nestas eleições foi a BSW (Aliança Sahra Wagenknecht – Razão e Justiça) – partido populista de esquerda e eurocético cujas posições anti-imigração valeram um terceiro lugar nos dois estados.
Estas vitórias são uma clara derrota para a coligação tricolor (socialistas, verdes e liberais) que governa o país e que está cada vez mais fraca. Ora, uma Alemanha potencialmente em pré-crise política e com a direita radical e xenófoba a crescer não augura nada de bom para a UE e para os tais ventos de mudança de que tanto temos discutido nestas crónicas.
Em Bruxelas, o livro de Vicente Valentim "O Fim da Vergonha: Como a direita radical se normalizou," que também já tem edição inglesa, deveria ser de leitura obrigatória – recomendo a todos.
Mulher não entra?
A Comissão Europeia prepara-se para ser aquilo que o site politico tem designado "um festival de salsichas." E tudo por culpa de uma maioria de países da UE que insistem em tentar convencer-nos que nas suas sociedades não há mulheres capazes e de qualidade para desempenhar a função de comissário europeu. É preciso evitar o ‘tokenismo’ quando se pretende atingir a paridade de género nas mais diversas áreas, mas neste caso não me parece que as fontes de recrutamento sejam assim tão limitadas que não permitam a indicação de mais mulheres habilitadas à função.
Apesar dos esforços de von der Leyen, como explica o Henrique Burnay no Expresso, os países da UE estão mais interessados em mostrar quem manda e refrear os impulsos de "boss" da alemã que queria a nomeação de mais mulheres. Muitos membros do Parlamento Europeu não estão contentes e é provável que algumas das salsichas sejam recambiadas para as respetivas capitais. O lado negativo é que tudo isto é bem capaz de atrasar a entrada em funções da nova Comissão. Não é dramático, mas o tempo não está para demoras que poderiam ser evitadas.
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Até daqui a 15 dias!
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