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As nossas zonas de (des)interesse

As nossas zonas de (des)interesse

Não existe muro a tapar o que se passa na Palestina, Mediterrâneo, Sudão, Congo ou Iémen. Quem não vê é porque escolheu não ver, e esse desinteresse é um muro erguido pela sua própria desumanização.

Vi duas vezes o filme A Zona de Interesse de Jonathan Glazer. Tenho por hábito fazer isto sempre que um filme recebe unanimidade de tão boas críticas e eu tenho reticências. Este hábito surgiu quando, em miúda, vi na videoteca do Largo do Calvário, em Lisboa (que já não sei se ainda existe), o filme Era uma vez no Oeste, do Sergio Leone, e não gostei. Poucos anos depois, revi-o numa grande sala de cinema e percebi a razão da unanimidade crítica, sentindo vergonha da minha, tão categórica, opinião inicial. Em relação ao A Zona de Interesse, a segunda vez confirmou praticamente todas as minhas reticências iniciais, mas reconheço que o filme continua na minha cabeça porque a atualidade parece imitar a ficção, que por sua vez imita o real.

O filme conta a banalidade da vida doméstica da família de um comandante do campo de concentração de Auschwitz em contraste com o horror que ocorre a poucos metros de distância. Durante o filme, a comparação com o genocídio na Palestina foi para mim omnipresente, aliás o próprio realizador Jonathan Glazer fez a isso menção no seu discurso de aceitação do Óscar de melhor filme estrangeiro: “Todas as nossas escolhas foram feitas para nos fazer refletir e confrontar no presente — não para dizer “Olhem o que eles fizeram naquela época”, mas sim “Olhem o que fazemos agora”. O nosso filme mostra aonde a desumanização leva, no seu pior. (…) estamos aqui como homens que rejeitam a apropriação da sua identidade judaica e do Holocausto para uma ocupação, que resultou em conflito para tantas pessoas inocentes. Quer sejam as vítimas de 7 de outubro em Israel ou o ataque contínuo a Gaza, para todas as vítimas desta desumanização, como resistimos a isso?”

A pergunta de Glazer é essencial e atormenta-me: como resistir à desumanização? Nos comentários a um vídeo nas redes sociais, onde uma mãe israelita faz um discurso doloroso depois da morte do seu filho, um dos reféns do Hamas, uma pessoa pergunta-se por que já não consegue sentir emoção diante da morte destas pessoas. Este comentário tocou-me, porque reflete um dos meus maiores receios: o medo de que, em mim, em nós, a brutalidade extrema do regime israelita prevaleça e nos desumanize. Após quase um ano de exposição diária a imagens do massacre sistemático de um povo, nomeadamente de milhares crianças, depois de estarmos expostos a imagens de uma violência gráfica tão extrema, de pequenos corpos mutilados, queimados, explodidos, como manter a empatia pelas mortes do lado do país agressor?

Como evitar amálgamas entre regimes bárbaros e terroristas como o israelita e os seus cidadãos? Como, mesmo quando acreditamos que os cidadãos possam ter algum tipo de responsabilidade, não aceitar que isso justifique a pena de morte, seja por parte do Hamas ou do exército do seu próprio país? Como ser diferente de tudo aquilo que acreditamos dever combater, de tudo aquilo que, por exemplo, denunciamos do lado do Estado de Israel?

Ninguém está imune à monstruosidade, e uma das formas de resistir é ter consciência das próprias falhas e vulnerabilidades. Resistir à sua própria desumanização exige humilde e vigilância. É, também, para isso que servem os valores e os princípios: para não nos deixarem perder o rumo. Para compreender que se, de repente, afinal aceitamos a pena de morte é porque algo está errado; se, de repente, a dor de uma mãe já não nos comove, é porque algo está errado.

Vivemos, tal como no filme de Glazer, a curta distância dos horrores do mundo, ouvimos os gritos de quem sofre, mas no nosso caso também os vemos. Não existe um muro a tapar o que se passa na Palestina, Mediterrâneo, Sudão, Congo ou Iémen. Quem não vê é porque escolheu não ver, e esse desinteresse é um muro erguido pela sua própria desumanização. A resistência à desumanização não se limita a uma postura passiva que consiste em condenar os atos de crueldade alheios; ela envolve uma ação ativa para garantir que não nos tornemos insensíveis ou cúmplices, e que aqueles que já perderam a sua humanidade não nos façam perder o interesse em preservar a nossa.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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