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Novos desafios para novos “abris”: o Alentejo, a agricultura e a população migrante

Novos desafios para novos “abris”: o Alentejo, a agricultura e a população migrante

Catarinas e Álvaros são hoje memória pendurada na decoração urbana quando o que defenderam se volta a consolidar no mesmo espaço.

Na História da Humanidade, há duas realidades que parecem ser constantes: por um lado, a geografia é determinante na forma de vida e na cultura e, por outro, as revoluções quase sempre ocorrem no seio de uma elite, deixando grande parte das populações quase indiferentes, pelo menos num tempo médio e longo.

No caso de Portugal, e na senda do que a melhor Geografia de meados do século XX fazia na Europa, Orlando Ribeiro publicava as suas magistrais obras Portugal o Mediterrâneo e o Atlântico, de 1945, e Mediterrâneo. Ambiente e Tradição, de 1968, demostrando a dialética entre o espaço físico e a ocupação humana. Citando e interpretando o geógrafo, Guilherme d’Oliveira Martins afirmava em relação ao Alentejo que “'nenhuma outra região portuguesa possui uma rede urbana tão antiga, tão densa e tão importante', com uma profunda organização romana e muçulmana, tendo esta passado quase intacta ao domínio português” (Portugal e Orlando Ribeiro, Raiz e Utopia (CNC), 21/02/2018).

Numa ruralidade profundamente marcada por civilizações urbanas, o Alentejo sempre mostrou na contemporaneidade uma proximidade muito grande aos movimentos políticos mais progressistas e mesmo de rutura, assim como sempre apresentou taxas de prática da religião católica muito abaixo dos territórios acima do Tejo. Por um lado, talvez as planuras demonstrem no olhar que os horizontes podem ser largos e, por outro, as revoluções que se seguem umas às outras, pouco acabam por fazer por quem diariamente trabalha as terras e pastoreia os gados, demonstrando que as lutas não são talhadas para terem um fim.

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Uma visita ao Alentejo de hoje revela-nos realidades que nos fazem pensar sobre muito do que ambicionamos com a herança do 25 de Abril (e não me refiro ao peso que a extrema-direita tem em algumas regiões). Há uma grande distância entre o Alentejo dos anos 70 do século passado, e hoje. Há 50 anos, saídas de um quase feudalismo rural que as aprisionava num mundo sem futuros, as populações encontravam no comunismo a emancipação desejada. Hoje, nas placas toponímicas das ruas de muitas vilas e aldeias, vemos os nomes de Álvaro Cunhal ou de Catarina Eufémia, como se estivéssemos perante peças de um museu, de uma sociedade que mudou.

Sem dúvida, a sociedade mudou. A exploração agrícola recriou-se em muito desse grande Alentejo, com nacionalizações e ocupações, em mecânicas de cooperativismo que desembocaram em formas empresariais, algumas de sucesso, e no regresso do latifúndio, agora num novo mundo, mas com a mesma terra, na mesma geografia.

Cinquenta anos depois, as populações viveram e construíram alguma emancipação, mas alguns desafios da desigualdade recriaram-se. Num quadro pós-coletivização, o latifúndio regressou com todos os seus desequilíbrios, sociais e ecológicos. Novas culturas e o acesso a água em abundância permitiram um regresso em força à exploração agrícola.

Ironicamente, e como que recriando a História que se julgava abandona ou ultrapassada, a necessidade de muita e barata mão-de-obra, criou fluxos de imigrantes que hoje pululam na paisagem, recriando traços de pobreza antes já perdidos. Já não são os trabalhadores sazonais das beiras, nem os próprios locais que, convenhamos, com a crise demográfica, já quase não existem. São os homens e mulheres de outras paragens em busca de uma vida melhor e que, fruto dos padrões de onde partem, aceitam com facilidade o que na nossa Lei e cultura já não é aceitável.

As gentes exploradas são outras, mas a discriminação é a mesma, fazendo parecer que a geografia tudo marca e define. As lutas, longe de serem outras, terão de ser as mesmas: a dignidade do trabalho e da pessoa humana. Alentejo recria-se no regresso a um passado que não deixou saudades.

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