www.sabado.ptDavid Erlich - 4 set. 11:09

Uma praia sem mar (ou da ditadura do ecrã distrativo)

Uma praia sem mar (ou da ditadura do ecrã distrativo)

Opinião de David Erlich

A minha hipótese: é duplo o mar na praia. Há o mar que a banha, mas há também aquele que perscrutamos nos olhos de quem, de perto, a partilha connosco. Toda a logística envolvida justifica, paradoxalmente em conjunto com a quietude a que depois o bronze convida, que ir à praia tome tempo. E, como tudo o que toma tempo, partilhamo-lo com quem mais gostamos, até porque estar na praia por horas pede silêncio e o conforto do silêncio comungado distingue cordialidade de intimidade.

Serve este prelúdio para partilhar o que vi neste verão: uma família de quatro – francesa, mas podia ser portuguesa –, almoçando não escassas vitualhas numa esplanada algarvia, absorta em ecrãs. Cada um na sua série, dois dos membros com auriculares. Permitam-me ser explícito: isto manteve-se durante toda a deglutição. As bocas abriam-se, mas o fechamento no ecrã manteve-se.

Dei por mim a pensar que certamente devia ser exceção, que talvez tivesse havido uma discussão e este fosse um singular momento de solitária acalmia.

Mas, no dia seguinte, a mesma família almoçava, na mesma esplanada, do mesmo modo. Insistia, pois, num duplo desaparecimento: o da imensidão do mar simbólico do olhar do outro e o da imensidão do mar físico que demanda contemplação.

O ano escolar já começou, o letivo está prestes a começar. Inspirados nesta praia sem mar, é útil refletir sobre o impacto, na aprendizagem, do uso recreativo de ecrãs. Sumario, assim, cinco grandes conclusões que podemos ler no livro A fábrica de cretinos digitais – os perigos dos ecrãs para os nossos filhos, do neurocientista Michel Desmurget (que tem quase seiscentas notas de rodapé com referências a estudos de suporte!): 1 – há fortes evidências de causalidade entre o desregulado uso recreativo de ecrãs e o decréscimo dos resultados escolares; 2 – tal uso promove que, mesmo quando a criança estuda, o faça em multitasking, sujeita a dispersão, diminuindo o impacto positivo do estudo; 3 – durante uma aula, interrupções de atenção motivadas por usos recreativos têm impacto na eficácia da aprendizagem, ainda que essas interrupções sejam muito breves; 4 – o uso de ecrãs de forma não monitorizada conduz a uma sobreposição de usos recreativos desfavoráveis face a usos formativos; 5 – a regulação, por parte dos encarregados de educação, do uso recreativo dos ecrãs é maior entre as crianças socioculturalmente mais favorecidas, evidenciando que este problema está a afetar mais aqueles que mais precisariam de maximizar as suas oportunidades de aprender.

A solução que o autor propõe é exigente: suprimir o uso recreativo de ecrãs até aos seis anos de idade e, a partir daí, permitir um uso recreativo de, no máximo, uma hora diária (a qual, com bom senso, pode ser acumulável – não usar de segunda a sexta-feira, por exemplo, e depois jogar um videojogo três horas no sábado e ver desenhos animados duas horas no domingo).

A posição do autor, sendo alarmante, não é ludita: Desmurget reconhece que "algumas ferramentas digitais podem facilitar o trabalho do aluno", as quais devem ser trabalhadas através de "uma utilização pontual, conceptualmente controlada e estritamente sujeitas às necessidades educativas". Inclui, em tais ferramentas, "a partilha de recursos e informação académica específica através da criação de grupos de discussão fechados", grupos nos quais o tempo despendido por estudantes não tem o efeito nocivo do tempo recreativo.

Quando me perguntam porque sou tão rigoroso com o uso do telemóvel nas aulas, mas em simultâneo promovo que o mesmo seja, de forma breve, estruturada e monitorizada, usado como recurso pedagógico, socorro-me deste neurocientista. Mais crónicas do autor 10:09 Uma praia sem mar (ou da ditadura do ecrã distrativo)

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