expresso.ptHenrique Burnay - 3 set. 11:03

Quem manda?

Quem manda?

Úrsula Von der Leyen queria que os governos indicassem um homem e uma mulher para que ela escolhesse quem seria o Comissário Europeu de cada país. Os governos não gostaram do excesso de poder da presidente da Comissão e o resultado é não haver paridade. Veremos como acaba o confronto

A falta de paridade na composição da futura Comissão Europeia é muito mais do que um problema de equilíbrio entre homens e mulheres nos cargos de poder da União Europeia. É também um teste ao poder entre os actores europeus.

Mário Mata, de quem nunca mais se ouviu falar, cantava em 1981 “Não há nada pa (sic) ninguém”, com um refrão muito apropriado a estes tempos

“Não há mulheres pra ninguém
Não há homens pra ninguém
Não há nada pra ninguém
E não há bocas pra ninguém!”

Foi mais ou menos isto que os Estados membros da União Europeia quiseram dizer a Úrsula von der Leyen. Aqui quem manda são os Estados, e mandam homens, mulheres ou quem quiserem, e não recebem ordens da Presidente da Comissão. Nem bocas de ninguém (leia-se, nem objecções do Parlamento Europeu). Vamos ver como fica este braço de ferro, se chega a haver, e quem o ganha.

Úrsula Von der Leyen é a presidente mais poderosa da Comissão Europeia mais poderosa dos últimos anos. Se não de sempre.

Entre 2019 e 2024 a Europa passou por uma pandemia, uma guerra e um desafio económico e financeiro único pelo meio. Em todas estas ocasiões, Von der Leyen esteve no sítio certo, à hora certa, com a mensagem certa. Isso deu-lhe prestígio, reconhecimento e poder.

Enquanto os chefes de Estado e de Governo tinham de gerir hospitais, cercas sanitárias, falta de máscaras e outros equipamentos, procurar vacinas, impor a vacinação e tentar convencer a população de que sabiam, nem que fosse vagamente, o que estavam a fazer, a Comissão Europeia, e mais precisamente a sua presidente, navegou aquele período conquistando confiança e poder, fazendo mais do que se lhe exigia e tanto quanto os europeus desejavam.

Depois, ou entretanto mais precisamente, veio a guerra e de novo Von der Leyen esteve no sítio certo. Apoiou a Ucrânia desde a primeira hora, disse a Zelensky que o lugar dos ucranianos era na Europa antes que uma delegação chefiada por Macron e Scholz tivesse tido tempo de chegar de comboio a Kiev para dizer quase isso, e antes de cada reunião dos Chefes de Estado e de governo anunciava o que seriam as decisões que o Conselho Europeu ia tomar.

Pelo caminho, Merkel foi-se embora, Macron foi abalroado pela política interna e o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, conseguia ser reconhecido pela sua inépcia aliada a uma pose e sotaque demasiado ridicularizáveis. Von der Leyen esteve praticamente sozinha no palco europeu. E esteve bem. Até quando esteve demais.

E é assim que chegamos ao seu segundo mandato. Os Estados não tinham muitas alternativas. A presidente da Comissão era reconhecida, popular e tinha conseguido apresentar-se como a candidata do PPE, se o PPE fosse o partido europeu mais votado, como foi. Von der Leyen era a solução razoavelmente óbvia que os governos aceitaram e o Parlamento tornou sua, em troca de promessas que cobriram um razoável número de contradições. Coisa típica da política europeia, reconheça-se.

Aprovada por governos e deputados, Von der Leyen informou que pretendia que cada governo lhe oferecesse dois nomes, um de homem outro de mulher, para que ela escolhesse quem seria o comissário de cada um dos restantes 26 Estados membros. E quem era publicamente recusado. À revelia dos Tratados, a presidente da Comissão queria ser ela a escolher o colégio de Comissários. Os governos não gostaram. Depois do spitzenkandidat, que na prática Von der Leyen foi, que impõe que o nome da presidente da Comissão seja uma escolha dos partidos europeus, agora era a escolhida que determinaria o resto da Comissão. Em dois passos, os governos viam o seu poder de determinar a composição do colégio de comissários ser posto em causa. E na política europeia, todo o poder que sai das capitais para Bruxelas dificilmente regressa. A maior parte disse-lhe que não. Nem mandava dois nomes, para que escolhesse um, nem mandava mulheres se não estivesse para aí virado. O resultado, à data, é uma futura comissão com 18 homens e apenas 10 mulheres (64% vs 36%). É certo que a presidente da Comissão é mulher, e a responsável pela política externa também será. E a presidente do Parlamento. Mas não haverá paridade na Comissão, como houve no anterior mandato.

O Parlamento Europeu está, ou faz questão de estar, muito incomodado. Por causa da questão da paridade, com certeza, mas também porque este incómodo é suficientemente popular em alguns meios para lhe permitir fazer um braço de ferro com os governos. No limite, pode mandar para trás a Comissão toda e mandar vir novos nomes. Ou escolher alguns, homens, e sugerir que ou os mudam ou chumba tudo. E os governos podem fazer o que têm feito em situações semelhantes, mas menos tensas a gerais, e ceder, ou insistir nos nomes inicialmente indicados. Se todos quiserem, vão haver uns quantos braços de ferro. E alguns braços torcidos. Quando virmos quais, saberemos quem ganhou e quem perdeu poder.

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