expresso.pt - 21 nov. 21:00
A derradeira mentira de John le Carré: o escritor-espião não guardou a verdade para o fim
A derradeira mentira de John le Carré: o escritor-espião não guardou a verdade para o fim
A vida e a obra de John Le Carré contam-se em “O Túnel de Pombos”. O documentário de Errol Morris está disponível na Apple TV+
É com natural expectativa que o espectador se sentará em casa para ver “O Túnel de Pombos”, o documentário que contém a última entrevista em vida de John Le Carré, assinado pelo consagrado realizador norte-americano Errol Morris (“The Fog of War”, “The Thin Blue Line”), hoje com 75 anos. E será com a mesma naturalidade que o encontro entre o autor do “melhor romance do pós-Guerra”, segundo Philip Roth, e um dos melhores documentaristas do mesmo tempo, vencedor do Óscar da categoria, desiludirá essa expectativa.
Para quem não os conheça, os planos entrecruzados, a retrospetiva encenada, o encanto de Le Carré (nascido David Cornwell, em 1945), a banda sonora de Philip Glass e as perguntas relativamente pertinentes (ainda que previsíveis), talvez tornem a hora e meia um tempo não desperdiçado. Para os que leram Le Carré, estudaram a sua história e acompanharam as incongruências da sua personalidade, o filme de Morris queda-se aquém do potencial.
O Le Carré “filho” cinge-se ao exotismo do pai — um vigarista — e ao abandono da mãe — que se fartou dele —, como se ambos houvessem marcado o escritor de igual maneira, tendo o primeiro causado feridas de dano mais severo do que a ausência da segunda. Lendo “A Vida de John Le Carré” de Adam Sisman, o fiel biógrafo autorizado, mas incompatibilizado, intui-se que Errol Morris abdicou de liberdade nas perguntas formuladas para esta conversa de despedida. Houve com certeza questões vetadas, como houve capítulos banidos da biografia de Sisman. Acesso ao arquivo? Claro que sim. Contacto com próximos? À vontade. Narração de todos os factos? Impossível.
“Não é por acaso que alguns dos meus personagens se mataram”, ameaçou Le Carré uma vez, ao dar conta das suas averiguações.
No documentário, sente-se o garrote mais apertado. A infância romantizada, não mais exposta do que no muito autobiográfico “Um Espião Perfeito”, sem referências ao irmão mais velho, que o acompanhou, nem alusões aos abusos sexuais do pai, que molestava ambos. O primeiro casamento com Ann, que daria o nome à mulher do seu George Smiley, praticamente ausente, além da pobreza inicial. A constante paixão por Jane, com quem ficaria até ao fim da vida e que morreria semanas depois dele, somente passageira. As traições a ambas, que deram origem ao segundo volume da sua biografia (“A Vida Secreta de John Le Carré”, editado este outono), não surgem de todo.
Le Carré recusa comentar “a intimidade da sua vida sexual”, quando os seus casos mais agudos foram frequentemente mais platónicos do que consumados. Mas Errol Morris não consegue levar-nos até aí. Ficamos a meio caminho.
David Montgomery/Getty Images Que segredos escondia John le Carré? Esta é a vida secreta do criador de espiõesApesar do apreciável esforço de Adam Sisman para equilibrar decência com factualidade, Le Carré não lhe dirigiu a palavra durante anos após a publicação da biografia, em 2015, reservando-se o direito de lhe responder, não pessoalmente, mas com a escrita das suas memórias, editadas logo a seguir, em 2016, como que vingança. Apropriadamente, o documentário de Errol Morris furta o título a esse volume de pequenas estórias, intitulado “O Túnel de Pombos”.
No documentário, a alegoria do “túnel” é explicada e ilustrada. Nas férias de luxo que o pai ocasionalmente surripiava, um hotel no Sul de França brindava os hóspedes com o desporto de tiro aos pombos a seguir ao almoço, inserindo-os num túnel que os levava até à mira dos comensais. Os atingidos despenhavam-se no mar. Os foragidos regressavam ao telhado do hotel, onde seriam novamente apanhados para repetirem o voo.
No documentário, a alegoria do “túnel” é explicada e ilustrada. Esta assunção de inevitabilidade é a única luz que vemos ao fundo do diálogo entre Le Carré e Morris, e é insuficiente para iluminar o protagonista
Esta assunção de inevitabilidade é a única luz que vemos ao fundo do diálogo entre Le Carré e Morris, e é insuficiente para iluminar o protagonista. Morris menosprezou os cinco anos de pesquisa que Sisman deixou feitos em “A Vida de John Le Carré”, assim como o volume de cartas que o filho mais novo do autor compilou em 2022 (“Um Espião Privado”). Sobretudo, não aproveitou a noção tácita que ambos assumem, mas não aprofundam: aquela era a última vez que John Le Carré seria entrevistado.
Mesmo assim, não há novidade além da nostalgia e nada, absolutamente nada mais do que o premeditadamente calculado pelo visado. Na sua tão versátil expressividade — Le Carré imita gente desde a faculdade —, o escritor falha em disfarçar o sorriso de satisfação por estar em pleno controlo de mais um capítulo da sua vida pública. “O Túnel de Pombos” documentário, como aliás “O Túnel de Pombos” livro, não o afasta da sua zona de conforto. “Gostei de voltar a vê-lo, independentemente das inverdades” é o resumo simpático que Adam Sisman fez do homem que biografou, após ter visto o filme de Errol Morris.
“Escrever é uma viagem de autodescoberta”, afirma ele, num raro acesso de clichê. Mas no caso de Le Carré é também uma jornada de autoinvenção. “Nada é verdade. É como eu o imaginei”, admite. “Eu sou um mentiroso”, descreveu-se, certa vez, a um par de detetives privados que contratou para se investigar a si próprio. Na metáfora final do documentário acaba por confirmá-lo, contando uma história de modo a evitar a sua. O cofre do chefe dos serviços secretos britânicos, aberto ao fim de décadas de mistério, encontrava-se afinal vazio. É isso que Le Carré seria sem os seus artifícios, as suas mentiras, as suas autoinvenções. Um cofre vazio, em comparação com o que esperariam dele depois de lerem os seus livros.
Para Sisman, o paradoxo incessante é que Le Carré, o denunciante do Ocidente, do capitalismo e da hipocrisia da Guerra Fria, era ao mesmo tempo David Cornwell, o mentiroso, esporádico traidor e vilão matrimonial. No documentário de Errol Morris, conhecemos o primeiro e pressentimos o segundo, mas não chegamos a vislumbrá-lo. “Eu não me preocupo se as pessoas me estão a dizer a verdade ou não nos meus filmes”, admitiu o realizador, numa recente entrevista sobre o “O Túnel de Pombos” ao “New York Times”, o que evidencia porque Le Carré o escolheu para dirigir o documentário; mais autobiográfico do que biográfico, mais ficcionado do que propriamente documental.
Nele, somos privados da sua privacidade, que foi sucessivamente exposta desde o seu falecimento em 2020, seja pelo memoir íntimo de uma amante (“O Coração Secreto”, 2022), seja pela publicação da sua correspondência pessoal (“Um Espião Privado”, no mesmo ano), seja pelo segundo volume da biografia de Sisman (“A Vida Secreta de John le Carré”), nas livrarias inglesas desde o mês passado.
“Eu sou um mentiroso”, descreveu-se, certa vez, a um par de detetives privados que contratou para se investigar a si próprio. Na metáfora final do documentário acaba por confirmá-lo, contando uma história de modo a evitar a sua.
No documentário da Apple TV+, no entanto, também nós recebemos pouco mais do que “a alegria de voltar a vê-lo”. O vício na vertigem da traição (“uma mulher por cada livro” é a estimativa do biógrafo) permanece oculto.
Ele, que nunca deixou de ser o “amante ingénuo e sentimental” (1971), declarava-se apaixonadamente a leitoras que se limitavam a escrever-lhe elogios aos seus livros, do outro lado do oceano. Ele, que condenou o seu herói ao casamento com uma adúltera, deu a Ann Smiley o nome da sua primeira mulher, a que não foi fiel. Ele, que morreu sem a sua crueldade revelada, pedia à sua segunda mulher para transcrever os relatos dos seus fins de semana extraconjugais, alimentando a dúvida sobre a veracidade dos textos. Seriam trabalho ou uma confissão? Ela nunca soube, sabendo sempre. Apenas com “O Túnel de Pombos” também nós ficaríamos sem saber.
Um mentiroso, compreensivelmente, não se poderia despedir dizendo a verdade. John Le Carré não o fez.