Henrique Burnay - 21 nov. 12:26
Ter interesses é legítimo
Ter interesses é legítimo
Em Portugal, o que devia ser feito com transparência e legitimidade confunde-se com o que possa ser feito às escondidas ou sem respeito pelas regras. Porque se quer
Em Bruxelas há centenas, talvez milhares, se contarmos mesmo todos, de lobistas e gente que representa interesses junto das Instituições europeias. Isso tem uma boa explicação, tem regras e, claro, tem consequências. Em Portugal, também há empresas, associações, profissões, ONGs e grupos de cidadãos com interesses afetados, positiva ou negativamente, por legislação ou decisões políticas. E há, naturalmente, quem os represente junto das instituições, sejam o governo, a Assembleia da República, as autarquias ou a administração pública. Mas não há regras claras. E isso também consequências.
Há três razões para o lobby - a representação de interesses - ser intenso e estar regulado em Bruxelas: a legislação europeia é feita longe dos países, aplica-se mais ou menos uniformemente aos 27 Estados membros, e quem a faz, os legisladores, sabe que não conhece todas as implicações e todos os constrangimentos da legislação e das políticas que prepara. É por isso que a Comissão gosta de ouvir os interessados antes de fazer as propostas; é por isso que os Deputados ao Parlamento Europeu sentem necessidade de conhecer a posição das partes interessadas, em particular do seu país; e é por isso que se fala com os governos nacionais durante estes processos.
Todos os intervenientes nos processos políticos e legislativos sabem que não sabem tudo sobre aquilo que decidem e que, por isso, faz sentido ouvir os interessados. E, em muitos casos, alguns também sabem que as mesmas regras podem ser mais positivas ou mais negativas para as empresas, profissionais ou regiões do seu país e querem conhecer essas consequências antes de decidir.
A legislação feita em Portugal não é tão distante da realidade sobre a qual se legisla. Mas o detalhe e o impacto de decisões político-administrativas é muito maior, pelo que a necessidade de conhecer em detalhe os interesses afetados é igualmente necessário.
A grande diferença é que em Bruxelas há regras, enquanto que em Portugal há regras a menos e informalidade a mais.
Em Bruxelas, empresas, europeias e de países terceiros (cada vez mais americanas), organizações profissionais, ONGs e consultores podem e devem estar inscritos no registo de transparência, onde indicam quem ou o que representam, que fundos recebem da UE, em que grupos de peritos ou de aconselhamento se sentam e é possível ver com quem reuniram. Do outro lado, os deputados podem (e cada vez mais o fazem) registar com quem se reúnem, e as chefias das direções-gerais e os gabinetes dos membros da Comissão Europeia são obrigados a fazê-lo. Além disso, quem prove um interesse legítimo pode pedir as notas dessas reuniões (excluindo informação que possa ser confidencial).
E há práticas não escritas. Reuniões normalmente com mais que um participante do lado dos decisores, ou com a porta aberta, e posições públicas sobre propostas legislativas e políticas.
Nada disto impede que se pratiquem crimes. As notas encontrados nas rusgas à eurodeputada Eva Kaili dificilmente seriam para a quermesse de Natal dos filhos dos funcionários do Parlamento Europeu. Mas haver legislação permite três coisas: quem quer cumprir sabe quais são as regras, quem quer escrutinar as decisões e eventuais motivações dos decisores tem como o fazer, e quem faz diferente sabe que está fora das regras.
Em Portugal, e ao contrário do que é comum dizer-se, o lobby não é ilegal. E é obviamente praticado. Mal seria que decisores e partes interessadas nunca falassem. Mas não há regras conhecidas, práticas estabelecidas e fronteiras claras entre o que é legítimo e o que não é. E há uma administração pública complexa, regras complexas e falta de transparência quanto a quem decide, como e porquê.
O resultado de tudo isto está à vista. O que podia e devia ser feito com suficiente transparência e perfeita legitimidade confunde-se com o que possa ser feito às escondidas ou sem respeito pelas regras. Políticos disponíveis para ouvir e prontos a desbloquear barreiras injustificadas - o que é suposto - confundem-se com criminosos cheios de ganância; empresários que precisam de explicar o que os limita ou sugerir que se mude o que os impede de investir - o que sempre haverá - confundem-se com gente com muito dinheiro e poucos escrúpulos, numa amálgama que torna tudo e todos iguais. Para benefício dos que não cumprem e dos que dizem que são todos iguais.
Num país pequeno, onde “quase todos” se conhecem e muitos são amigos, é necessário garantir que uma e outra coisa não são os critérios de acesso aos decisores. Mas como o acesso é e deve ser possível, é necessário regulá-lo. O que nenhuma maioria quis ainda, com sucesso, fazer. E quando quase conseguiram, o Presidente da República vetou por razões que dificilmente se justificam.
Regular a representação de interesses e as regras aplicáveis aos decisores quando se relacionam com representantes de interesses não é astrofísica. Só não está feito porque não se quis. Pode ser que agora se queira. Ou se perceba a necessidade.
PS: por uma questão de transparência, importa dizer que isto - a representação de interesses (privados e até públicos) - é parte do que faço profissionalmente, sobretudo junto da União Europeia