expresso.ptAntónio Filipe - 20 nov. 09:50

O tráfico de influências e a saúde da democracia

O tráfico de influências e a saúde da democracia

As consequências da atuação do Ministério Público foram motivo de intenso debate nos últimos dias. A tese do golpe de Estado ou a tese da corrupção generalizada não se justificam, mas a saúde da democracia e o tráfico de influências justificam sérias preocupações

Por paradoxal que pareça, o debate sobre a corrupção veio de novo ao de cima a propósito de um processo em que o juiz de instrução considerou que não havia indícios de corrupção. Nada de novo, quanto a isso. É um hábito da nossa vida política-mediática que sempre que um processo criminal envolva crimes de corrupção se abra uma espécie de concurso de ideias onde os partidos mais vocacionados para surfar ondas mediáticas se proponham descobrir a pólvora e propor novas leis em cima das leis existentes, como se leis futuras resolvessem casos passados e como se o problema do combate à corrupção em Portugal se devesse a falta de leis.

O problema não é de falta de leis. Se fosse, não teria havido banqueiros condenados, nem antigos governantes acusados, nem investigações em curso envolvendo situações de promiscuidade entre a política e os negócios. Há, contudo, um problema de morosidade das investigações e dos julgamentos que faz com que o tempo da Justiça seja incompreensivelmente lento aos olhos dos cidadãos, em óbvio contraste com um tempo mediático que produz condenações imediatas no “tribunal da opinião pública” cujos efeitos reputacionais são irreversíveis.

Se o acusado for condenado sê-lo-á muitos anos e muitos recursos depois, e se for ilibado ou absolvido, já os efeitos da condenação pública se produziram há muito. Este é um problema que merece reflexão, designadamente quanto à adequação dos mecanismos processuais existentes, mas essa discussão não pode ser feita a propósito deste ou daquele caso.

Atuações recentes do Ministério Público, nomeadamente as buscas realizadas a sedes do PSD e à residência de dirigentes seus, e o caso mais recente que levou à demissão do Primeiro-Ministro e à queda do Governo em que existe uma clara desproporção entre a gravidade dos factos imputados e a dimensão da crise política provocada por essa atuação, suscitam preocupações justas, até pelas flagrantes violações do segredo de Justiça que lhes estão associadas, e justificam uma reflexão que deve ser feita no futuro.

Essa reflexão, porém, não deve conduzir à ideia de que é preciso limitar a autonomia do Ministério Público. O contraponto à autonomia do Ministério Público é a governamentalização da investigação criminal e da ação penal. O Estado democrático precisa de um Ministério Público forte, autónomo e livre de pressões do poder político. O problema também não se resolve através de um reforço dos poderes do Procurador-Geral da República que o tornem numa espécie de comissário do poder político para controlar o Ministério Público.

O que é necessário é, no âmbito da separação de poderes constitucionalmente consagrada, encontrar um justo equilíbrio na organização e no modo de atuação do Minist��rio Público que salvaguarde os valores que importa salvaguardar: a autonomia da investigação e ação penal no respeito pelos direitos e garantias de todos os envolvidos. Sublinho, porém, que essa discussão não deve ser feita em cima de casos concretos que só convidam ao extremar de posições.

O caso recente que levou à demissão do Governo não terá relevância, segundo o tribunal de instrução criminal, quanto às suspeitas de corrupção ou prevaricação, mas já foi considerado relevante no que se refere ao tráfico de influências, ou seja, à existência de pessoas que, devido à influência que exercem sobre titulares de cargos públicos surgem como facilitadores da tomada de decisões favoráveis a interesses económicos envolvidos.

De entre o concurso de ideias aparentemente anticorrupção surge recorrentemente a reivindicação da legalização do lobbying, apoiada pelo PS e por toda a direita, mas também por organizações que se afirmam preocupadas em combater a corrupção. Do que se trata afinal, em nome da transparência, é de criar um mercado legal do tráfico de influências, através do qual agências de comunicação ou escritórios de advogados possam oferecer os seus serviços enquanto influenciadores dos processos de decisão. Se o objetivo é combater a corrupção não parece boa ideia.

O tráfico de influências é crime e cabe, justamente, no tipo de criminalidade aparentada com a corrupção. Se pensarmos no que se tem passado em Portugal nas últimas décadas facilmente concluímos que este tipo de atuação se insere no padrão típico das relações de promiscuidade entre os detentores do poder económico e os titulares de cargos políticos executivos.

As privatizações levadas a cabo por Governos do PS, do PSD e do CDS nas últimas décadas são casos tenebrosos de esbulho do mais valioso património do Estado em benefício de interesses privados que dele se apropriaram e em muitos casos o destruíram, ficando eles com os lucros que obtiveram e o Estado com os prejuízos que provocaram. Os casos do Grupo Espírito Santo, do BPN, da Portugal Telecom ou da TAP foram bem elucidativos.

O caso das parcerias público-privadas rodoviárias que continuam a custar milhares de milhões ao Estado para beneficiar privados são exemplos que nos interpelam. As chamadas “portas giratórias” por onde circulam governantes e administradores de empresas são o pão-nosso-de-cada-dia. O tráfico de influências é a forma típica de relacionamento entre o poder económico e financeiro e os executores das políticas de direita. A corrupção e as políticas de direita são irmãs siamesas. É preciso combatê-las.

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