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Mais de 500 anos depois, a cultura judaica renasce no Porto

Mais de 500 anos depois, a cultura judaica renasce no Porto

Já com um milhar de membros, de várias nacionalidades, dois museus, restaurantes e lojas kosher, Comunidade Judaica do Porto tenta recuperar marcas de uma herança bem antiga

"Eu achava que nunca poderia vir a ter filhos, de tanto que mexeram comigo". O testemunho de "Nádia" Lassmann, em português, num vídeo mostrado perto do final da visita, é um duro lembrete para ecoar na consciência de quem passa pelo Museu do Holocausto do Porto. E uma forte mensagem para ajudar à missão da Comunidade Judaica local, apostada em combater o antissemitismo e promover a compreensão da cultura judaica em tempos de "novos sinais inquietantes", assinala o seu presidente, Gabriel Senderowicz.

Nádia, uma adaptação brasileira de Chaja Nacha Lassmann, nascida na Polónia em 1925, é uma sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau na II Guerra Mundial, uma judia que sofreu no corpo as cruéis experiências médicas do nazi Josef Mengele, "o Anjo da Morte". Radicada no Brasil, hoje com 98 anos, é mãe de um dos membros da Comunidade Judaica do Porto, Josef Lassmann, e transmite de viva voz um tenebroso passado que "ainda dói".

Inaugurado em 2021, o Museu do Holocausto, que dá conta também de como a cidade do Porto serviu de refúgio para vários judeus nessa altura (há provas físicas de 416 fichas de identificação registadas, e aqui expostas), tornou-se logo no primeiro ano um dos espaços museológicos mais procurados da cidade, com cerca de 40 mil visitantes a afluírem ao espaço, discreto, aberto na Rua do Campo Alegre. Mesmo ao lado, abrirá brevemente uma loja kosher (produtos ou alimentos que respeitam a lei dietética judaica). Ainda na mesma rua, existe também um restaurante kosher.

A poucos metros dali, na perpendicular rua Guerra Junqueiro, fica a grande sede espiritual da Comunidade Judaica do Porto (CJP), a Sinagoga Kadoorie Mekor Haim, a maior da Península Ibérica, e o Museu Judaico mesmo em frente, do outro lado da rua. Não muito longe, na mesma zona da Boavista, há também um hotel com certificação kosher, muito requisitado pelos turistas judeus que procuram a cidade para testemunhar a revitalização da cultura judaica no Porto, mais de 500 anos depois do édito de expulsão assinado por D. Manuel I em 1496 e dos três séculos de Inquisição que se lhe seguiram, levando ao êxodo de milhares de judeus ou à sua conversão forçada em cristãos-novos.

A estrela de David volta a brilhar na Invicta, apesar da célebre Operação Porta Aberta, operação policial que atingiu membros da comunidade local no âmbito da chamada Lei dos Sefarditas, ter surgido a ofuscar o renovado espírito judaico na cidade. A legislação de 2015 - com fim já anunciado para o final deste ano - concede a cidadania portuguesa aos descendentes de judeus expulsos do país no século XV, como forma de compensação histórica. No entanto, suspeitas de corrupção com as certificações de ascendência sefardita feitas pela CJP, entre notícias de milionários próximos do Kremlin a obter a nacionalidade portuguesa por essa via (como aconteceu com Roman Abramovich), levaram a uma investigação que resultou na detenção do rabino-chefe do Porto, Daniel Litvak, em março de 2022 (mais tarde libertado e com as medidas de coação anuladas pelo Tribunal da Relação) e na "invasão" da Sinagoga Kadoorie Mekor Haim "como se fosse um bordel", acusa Gabriel Senderowicz.

As investigações, que continuam em segredo de justiça, já motivaram uma queixa da CJP à Procuradoria Europeia contra o que considera ser uma "conspiração antissemita" em Portugal. "Não fomos nós que fizemos a lei nem pedimos para fazer parte dela", reiteram, recusando todas as acusações.

Apesar dos danos reputacionais, a atividade da comunidade judaica portuense não esmoreceu. Neste ano de 2023, conta Gabriel Senderowicz, a CJP "ultrapassou já um milhar de membros, de mais de 30 nacionalidades diferentes". Números que já não se viam desde esse final de século XV, antes da expulsão ordenada por D. Manuel, quando o Porto se tinha tornado também porto de abrigo para milhares de judeus refugiados de Espanha e existia na cidade uma famosa judiaria onde o rei D. João I tinha confinado a comunidade judaica no século anterior.

Se ainda estão identificados muitos traços dessa forte presença dos judeus no Porto durante a Idade Média, nas velhas ruas dos morros que desaguam na Ribeira - e que fazem parte de roteiros turísticos - as marcas do revitalizado judaísmo contemporâneo na cidade deslocaram-se mais para este eixo nobre da Boavista, em redor da Sinagoga mandada construir há 100 anos por aquele que é considerado o "pai" da atual comunidade judaica portuense, o capitão Artur Barros Basto, um português convertido ao judaísmo em Marrocos no início do séc. XX "e cuja reintegração no Exército ainda hoje é esperada pelos seus descendentes, num caso conhecido como o do Dreyfus português (ver texto secundário)", sublinha o atual presidente da CJP.

É ali, na Sinagoga Kadoorie Mekor Haim, que se prepara por estes dias uma das grandes celebrações do calendário hebraico, o Yom Kippur (ver caixa), ou "dia do perdão", que no ano passado juntou na sede espiritual da CJP "mais de 700 pessoas". "Poucas são as sinagogas na Europa com um cerimonial tão forte como a nossa", garante Gabriel Senderowicz, um brasileiro de origem polaca que se mudou para o Porto em meados da década passada, também ele um rosto da renovada presença judaica na cidade e na região.

Ao contrário de Gabriel, que é um judeu ashkenazi (ou seja, de ascendência do centro e leste europeu), a comunidade do Porto é composta por judeus "maioritariamente sefarditas, famílias originárias de sítios diversos, mas com raízes ancestrais aqui em Sefarad", o nome hebraico historicamente utilizado para referência à Península Ibérica, como explica Michael Rothwell, diretor do Museu Judaico. É ali que nos recebe, num edifício mesmo em frente à sinagoga. Inaugurado em 2019, este espaço, que explica a história do judaísmo e a presença da cultura judaica no Porto, ao contrário do Museu do Holocausto não está aberto ao público em geral, sendo mais reservado à comunidade judaica e visitas educativas.

À entrada do prédio, uma mensagem em hebraico: "Em todo o mundo, onde um judeu encontra um português, deve ajudá-lo; e onde um português encontra um judeu, deve também ajudá-lo." Num mural exterior recentemente inaugurado, são homenageados os nomes de 842 vítimas da Inquisição no Porto, desde uma criança de 10 anos a Cecília Cardoso, "A Velha" (assim está inscrito), de 110. Nas salas interiores, além de vários objetos importantes para a religião judaica - dos rolos da Torá (o texto sagrado ou manual de conduta do judaísmo) a uma réplica do Templo de Jerusalém, o shofar (chifre de carneiro) ou a menorá (candelabro de sete braços) - está em destaque a figura do capitão Artur Barros Basto, que fundou a então Comunidade Israelita do Porto (hoje CIP/CJP), em 1923, e lançou a construção da Sinagoga Kadoorie Mekor Haim, que haveria de se inaugurar em 1938, "em contraciclo com o que se verificava no centro da Europa, onde se queimavam sinagogas e grassava o antissemitismo", contextualiza Michael Rothwell, um matemático inglês radicado no Porto há mais de 35 anos. Esse ano "ficou marcado, de resto, pela denominada Noite dos Cristais", de 9 para 10 de novembro, quando mais de mil sinagogas foram destruídas e cerca de sete mil lojas e escritórios de judeus foram vandalizados na Alemanha e na Áustria ocupada pelos nazis. Enquanto isso, no Porto, abria a maior sinagoga da Península Ibérica, quase paredes meias com o Colégio Alemão.

Hoje, a Comunidade Judaica do Porto vive um cenário semelhante. Cresce em contraciclo com o esvaziamento de comunidades noutras partes da Europa, onde, diz o presidente da CJP, "o antissemitismo volta a fazer-se notar". Em pouco mais de 10 anos, aquela que seria uma inexpressiva comunidade judaica na Europa é hoje "uma das mais fortes em termos religiosos, culturais e educativos", garante Gabriel Senderowicz.

Além dos museus, restaurantes, loja e hotel, a CJP estabeleceu protocolo com uma universidade privada para acolher muitos estudantes judeus estrangeiros, estabeleceu uma terceira sinagoga (além das duas existentes no edifício da sinagoga central) perto dessa universidade para a população estudantil, implementou a Escola Judaica Portuguesa (uma escola online), tem a maior biblioteca judaica da Península, produziu filmes históricos como Sefarad, que conta a história do capitão Barros Basto, ou 1618, sobre a Inquisição no Porto, e inaugurou até, recentemente, um novo cemitério judaico, fora da cidade - o último tinha sido destruído no final do séc. XV. Para combater vários dos mitos que alimentam o antissemitismo, a CJP realiza também regularmente cursos de formação para professores na sinagoga e nos museus, e promove um diálogo inter-religioso, mantendo protocolos de cooperação com a Diocese Católica do Porto e a Comunidade Muçulmana local e promovendo diversas ações de caridade.

O dinamismo e crescimento da comunidade têm sido notórios, como não acontecia desde esses longínquos tempos pré-Inquisição. "A integração de novos membros é relativamente fácil. A cidade é muito bela, com gentes pacíficas, tem uma longa história judaica, e isso faz com que os recém-chegados se sintam bem", sintetiza o presidente da direção. Dos cerca de 1000 membros atuais, só 5% são portugueses de nascimento. A maioria são famílias estrangeiras atraídas pelo quadro acolhedor da cidade e pelas oportunidades de investimento, e há ainda os muitos estudantes.

O futuro, no entanto, é incerto, admite Gabriel Senderowicz. "A permanência por longo tempo está ameaçada, porque a cidade e o país são bons para viver, mas maus para trabalhar. Os ordenados são medíocres e o futuro não se augura auspicioso na presente encruzilhada da história", refere.

Além disso, sobram os ecos da Operação Porta Aberta, que mereceu mesmo uma sala extra no Museu Judaico, onde a CJP expõe o que considera serem novos sinais de antissemitismo, "que sempre aparecem quando os judeus começam a ser notados", acusa David Garrett, responsável jurídico, vogal da direção e também arguido, juntamente com o rabino Daniel Litvak, na operação que levou mesmo a Comunidade Judaica do Porto a decidir deixar de certificar judeus sefarditas.

O dia mais sagrado

O que é o Yom Kippur?
O Yom Kippur, ou Dia da Expiação, é considerada a data mais importante do judaísmo e marca o fim de um período de 10 dias conhecido como Dias de Temor. É um dia de arrependimento dos erros cometidos no passado, sobretudo no ano anterior, em relação a deus e aos seres humanos.

Em que data ocorre?
Ocorre nove dias após o Rosh Rashaná, o Ano-Novo do judaísmo, no décimo dia de Tishri, o primeiro mês do ano civil e o sétimo mês do ano religioso no calendário hebraico lunissolar. No calendário ocidental, a data deste ano coincide com o dia 25 de setembro. Como o dia no calendário judeu se estende do anoitecer de um dia até o anoitecer do dia seguinte, celebra-se de 24 para 25 de setembro.

Que rituais são cumpridos no Yom Kippur?
Durante todo o Yom Kippur, além de um jejum de 25 horas, não é permitido trabalhar, exceto serviços de emergência, nem tomar banho, ter relações sexuais, usar perfumes, maquilhagem ou produtos de couro, por exemplo. A sinagoga é o ponto central das celebrações e nela ocorrem vários momentos de oração coletiva ao longo do dia, em que os judeus, vestidos de branco, fazem as suas preces a Deus. Após o final da última oração, é tocado o shofar (chifre de carneiro), indicando o fim do Yom Kippur, coincidindo com o cair da noite e o final do jejum.

O "Dreyfus português" ainda aguarda reintegração no Exército

Figura paternal da Comunidade Judaica do Porto, Artur Barros Basto foi um capitão do Exército português que lutou na Primeira Guerra Mundial e se converteu ao judaísmo em 1920, em Marrocos, junto das comunidades sefarditas do Norte de África. Três anos depois, juntamente com um grupo de judeus ashkenazim oriundos da Europa Central e Oriental que viviam no Porto naquela altura, restabeleceu oficialmente a comunidade judaica da cidade, praticamente desaparecida desde o final do séc. XV, e embarcou numa empreitada ousada de percorrer o país para reconverter várias centenas de marranos - judeus que foram forçados durante a Inquisição a escolher entre a conversão e a expulsão ou mesmo a morte.

Tendo conseguido convencer alguns dos jovens dessas famílias a mudarem-se para o Porto, onde se estabeleceu "um seminário teológico" para a educação do judaísmo, o capitão do Exército começou a ser alvo de denúncias anónimas sobre uma alegada homossexualidade, explica Michael Rothwell, diretor do Museu Judaico. "O início de um processo" que acabaria por resultar na sua expulsão do Exército, em 1937, não pela homossexualidade não provada, mas por ter feito a circuncisão a vários alunos. Uma "perseguição" que leva este a ser considerado o caso do Dreyfus português, numa alusão ao capitão francês Alfred Dreyfus, de ascendência judaica, falsamente acusado de traição no final do séc. XIX.

Só em 2012, mais de 60 anos depois de Barros Basto ter morrido com a esperança de que "um dia lhe fosse feita justiça", o Parlamento aprovou uma proposta de resolução que recomendava ao Governo a reintegração póstuma de Barros Basto e, no ano seguinte, o Chefe de Estado Maior do Exército decidiu recomendar a sua reintegração no posto de coronel. No Museu Judaico está exposta uma farda de coronel que Barros Basto nunca vestiu.

No entanto, ainda hoje continua por oficializar a reintegração militar do fundador da CJP, uma luta que a sua neta e vice-presidente da comunidade, Isabel Lopes, promete não deixar cair. "Não esqueço que a minha avó lutou muito pela reabilitação do meu avô. A minha mãe continuou essa luta. Eu luto agora. Amanhã, se necessário, serão as minhas filhas", é citada no livro que assinala o centenário da CJP.

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