visao.ptsvicente - 18 set. 10:05

Visão | Clarificar para obscurecer

Visão | Clarificar para obscurecer

A lei 55/2023 define como seu objetivo clarificar o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade. Não nos parece, contudo, que o resultado final do texto legislativo seja, assim, tão clarificador e, pelo contrário, vem trazer ainda mais incertezas na aplicação da lei

A Assembleia da República aprovou a Lei 55/2023, de 8 de setembro, que vai entrar em vigor no dia 1 de outubro e que altera o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e a Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, o primeiro que tem como objeto a definição do regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas e o segundo que define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.

 A lei define como seu objetivo clarificar o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade.

 Não nos parece, contudo, que o resultado final do texto legislativo seja, assim, tão clarificador e, pelo contrário, vem trazer ainda mais incertezas na aplicação da lei.

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Nos termos do artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 30/2020, que procedeu à descriminalização do consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, “o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contraordenação” e, nos termos do n.º2 “para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

 O legislador definiu claramente a fronteira entre o crime e a contraordenação em função da quantidade detida. Isto é, se excedesse a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias era o crime de consumo, previsto no artigo 40º, n. 2, do DL 15/93, se não excedesse era apenas uma contraordenação.

 Assim, perante a apreensão de uma quantidade inferior àquele limite, a autoridade policial comunicava imediatamente o auto de notícia e apreensão à comissão para a dissuasão da toxicodependência para efeito de desencadear o procedimento contraordenacional.

Com as alterações introduzidas pela Lei 55/2023, a aquisição e a detenção para consumo próprio de estupefaciente, independentemente da quantidade que o agente detenha, apenas integra a prática de uma contraordenação.

Sendo que a aquisição e a detenção que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias apenas constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo.     Isto acarreta, desde logo, consequência práticas ao nível da atuação das autoridades policiais.

Perante a alteração em causa, parece-nos que independentemente da quantidade detida, o auto de notícia e apreensão tem sempre que ser comunicado pela autoridade policial ao Ministério Público para instauração de procedimento criminal e, só após, no decurso do mesmo, se a autoridade judiciária (Ministério Público ou Tribunal), consoante a fase do processo, concluir pela inexistência de indícios suficientes de que a droga detida não é para consumo e proceder ao arquivamento, não pronúncia ou absolvição, é que determina o encaminhamento para a comissão para a dissuasão da toxicodependência.

 Na verdade, com a alteração do n.º 2 do artigo 2º da Lei 30/2020, e constituindo o critério do consumo médio individual durante o período de 10 dias apenas um indício de um propósito diferente do consumo??, parece-nos que o legislador deixou cair a presunção de consumo até agora prevista e resultante daquela lei, que permitia às autoridades policiais, desde logo, encaminharem o auto de notícia para a CDT.

Tal vai provocar um elevado grau de incerteza nas autoridades policiais quanto ao modo de procederem nestas circunstâncias e determinar que pessoas a quem seja apreendida quantidade diminuta de droga, e que claramente são consumidores, sejam arrastados para o sistema judicial, quando podiam e deviam ser imediatamente encaminhados para a CDT para o seu acompanhamento.

Por outro lado, vai retardar excessivamente a intervenção da CDT, nestes casos, com prejuízos óbvios para a proteção sanitária e social dos consumidores.

Este é um exemplo claro de uma lei que no objetivo visava clarificar, mas que no resultado só vem mesmo complicar!!

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Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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