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O Coração Ainda Bate. O gelado

O Coração Ainda Bate. O gelado

Inês Meneses recorda o maior luxo da infância.

A fotografia está sempre nítida mesmo que não exista, a não ser na minha memória: mostra um areal coberto pelo pano azul e branco listado, avisando que já era mesmo Verão. Havia uma certa nostalgia quando já só víamos a madeira despida e descoberta, e nós temíamos o fim das férias, do calor, até da nortada que nos sacudia para dentro das barracas inventando jogos que não tinham lugar noutro espaço.

Voltei há dias ao areal: a praia estava quase deserta, mas duas mulheres cobriam as pernas na água gelada onde antes eu nem hesitava em entrar. Cheirava a mar. As algas verdes forravam os rochedos e antes, como agora, temi escorregar. Luxo era chegar à praia de manhã cedo, quando ficar na cama não era uma opção, e avançava com o meu pai pelo areal, seguindo as pisadas das gaivotas. O ar marítimo enchia-nos os pulmões e eu comia o meu pão com manteiga feito de véspera, e o dia ainda teria tanto para me contar. O tempo era menos veloz. Um dia de praia equivalia ao que me parece agora uma semana inteira.

O meu pai alugava a barraca por um mês e todos os dias lá íamos, independentemente do nevoeiro cerrado ou do vento. Estava pago. Tínhamos de aproveitar. Alugar aquela barraca, tanto tempo, também era um luxo.

A minha mãe vinha depois ter connosco. Trazia o almoço, a fruta e a água gelada que acabaria por ficar quase quente com o passar das horas.

Na praia havia um baloiço e eu era tentada a esperar pela minha vez, pelo meu balanço. Depois voltava ao ponto de partida, um lanche esperava-me: coisas simples como um pão com marmelada ou queijo. Não havia outros luxos. Havia, na verdade: no fim das férias, o meu pai tirava da sua pequena carteira preta duas moedas com as quais eu e o meu irmão íamos comprar o gelado mais caro da altura. Era o fim da corrida, a chegada à meta. As férias acabavam com um gelado como prémio, e eu vivia entre a ânsia de receber o meu prémio e a tristeza por dizer adeus à praia. Aquele gelado, que às vezes pingava na areia, era o melhor gelado que eu comi na vida, mesmo que a ele possa voltar mais de 40 anos depois. Um gelado que tinha nele a praia, o mar frio, o cheiro das algas, a nortada que nos empurrava a areia para os olhos, os casacos de malha que chegavam pela mão da minha mãe. Aquele gelado era a fotografia final de férias. Aquela que nunca pude guardar mas que até hoje perdura na minha memória. O maior luxo da minha infância.

Desse tempo em que não havia luxos, preservávamos o maior de todos: a vida que nos parecia infinita. A possibilidade de ter pela frente não três meses de férias, mas um horizonte longo quase por desenhar. É impossível não termos saudades do tempo em que o futuro parecia uma auto-estrada com o céu ao fundo e nenhum obstáculo. Nenhum. Dávamos tantas coisas por certas: a saúde, a casa, o meu pai a chegar do comboio com o jantar na mesa sempre às sete. E quase nada falhava.

A consciência agrava a nossa ideia de finitude. A vida traz-nos sobressaltos aos quais, ingenuamente, pensámos ser poupados. Como vivemos tão alheados da morte, se é a primeira herança que recebemos? Ou passamos a vida a tentar fintá-la, como os jogadores que no campo ainda correm para a bola sabendo que depois dos 90 minutos alguém vai sair a perder?

Hoje, o gelado ao fim do dia na praia ainda pode ser o meu prémio, mas troco-o facilmente por um brinde onde peço sempre saúde, amor e beleza. Depois olho para a praia e lembro-me do que fui, onde estive, as vezes em que me enrolei numa toalha a tiritar de frio e o sol me devolveu ao prazer.

A água continua gelada e as barracas mantêm a cor.

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