expresso.ptMaria d'Oliveira Martins - 5 jun. 16:04

Uma mulher é um homem como todos os outros?

Uma mulher é um homem como todos os outros?

Escondendo-nos atrás desta ou daquela fação na resposta à pergunta do título, sem um esforço por compreender quem pensa de forma diferente, apenas perpetuaremos o nosso papel de joguetes nas mãos daqueles que, em nosso nome, assumem o debate da igualdade, com maior preocupação pelos dividendos que podem tirar do mesmo do que pelas melhorias que o mesmo pode proporcionar a toda a sociedade

Esta frase provocadora é de Simone de Beauvoir. Não obstante ser de 1949, ainda é hoje bem atual – sobretudo em forma de pergunta –, porquanto o desentendimento que adivinhamos quanto à sua resposta é ilustrativo da grande discussão que ainda hoje se trava sobre a igualdade.

Não é ainda hoje possível resumir a um pensamento único a perspetiva sobre o papel que a mulher deve ter na sociedade. Isto porque a visão sobre esse papel oscila entre dois paradigmas: um paradigma naturalista e um outro assente na libertação dos condicionalismos biológicos.

De acordo com o paradigma naturalista, a defesa dos direitos das mulheres parte, não de uma posição de antagonismo ou luta, mas sim de complementaridade em relação aos homens. O que está em causa é, pois, a conformidade com aquilo que se crê ser a natureza das coisas. De acordo com esta perspetiva, os direitos das mulheres correspondem àquilo que tenha a ver com a valorização, na sociedade e no trabalho, das suas características femininas e maternais.

A Igreja Católica assume ainda hoje claramente esta visão naturalista quando promove a imagem da esposa e mãe devotada, tomando como modelo a Virgem Maria, ou quando promove os métodos contracetivos naturais, numa recusa da artificialização dos mecanismos reprodutivos (dizer isto não ignora evidentemente a existência de movimentos feministas menos ortodoxos na Igreja, desenvolvidos sobretudo depois do Concílio Vaticano II).

Diferentemente, de acordo com o paradigma de libertação da natureza, aquilo que se reivindica é a emancipação da mulher em relação aos condicionalismos biológicos que se creem estar na origem da situação de dominação por parte dos homens. Partindo da crítica a uma sociedade patriarcal, propõe-se um modelo alternativo, que resolva os problemas das mulheres, baseado na reconstrução da sua sexualidade e no controlo sobre o fenómeno reprodutivo. Deste ponto de vista, falar em direitos das mulheres significa defender a luta pelo livre acesso a métodos contracetivos, a liberalização do aborto e a luta contra todas as formas de subjugação aos homens. A associação dos movimentos feministas com a causa LGBT ou a ideologia de género é facilmente estabelecida neste paradigma de libertação da biologia e dos seus constrangimentos.

Por assentarem em diferentes modos de pensar, as discussões que estas visões sobre a mulher suscitam têm sido exploradas politicamente e têm ajudado a cavar um fosso político-ideológico, numa dinâmica que gera as suas próprias contradições. Nos nossos dias, o aproveitamento político destes paradigmas explica, em grande medida, a associação tendencial de muitos cristãos simultaneamente a ideias mais conservadoras em termos de costumes e liberalizantes em termos económicos (estas últimas, em tantos elementos, tão distantes do cuidado do próximo e dos mais pobres, pregado por Jesus). Explica também, em parte, a grande proximidade das ideias mais liberais em termos de costumes e das ideias marxistas (numa clara contradição entre o liberalismo de costumes e a intervenção económica sufocante do Estado).

Esta clivagem é notória nos Estados Unidos: se há uns anos era politicamente inócuo para um Republicano defender o direito ao aborto (recorde-se que o Roe v. Wade foi proferido por um Supremo Tribunal composto por juízes maioritariamente nomeados por Presidentes Republicanos), hoje isso tornou-se difícil ou quase impossível. É nas questões da família, do género e nos direitos reprodutivos que assentam as principais negociações políticas norte-americanas. Nunca a frase de Carol Hanisch “o pessoal é o político” fez tanto sentido. A realidade americana atual é explicada pelo facto de os seus partidos terem conscientemente, desde os anos 1970, procurado arregimentar votos a partir de temas que mobilizam a opinião pública, num fenómeno conhecido como “voto de assunto único” (single-issue vote), que leva os eleitores a votar num partido – desvalorizando outros pontos do programa – desde que este defenda aquele assunto do seu interesse.

Portugal está longe de ficar imune a estas discussões. As trocas de argumentos em torno da ideologia de género, dos programas de educação sexual e das casas de banho das escolas são bem demonstrativas desta clivagem.

Este ambiente radicalizado é, todavia, nocivo, podendo mesmo fazer perigar o consenso básico que deve existir em relação à igualdade entre homens e mulheres.

Por um lado, porque se baseia numa dinâmica que prescinde de compreender o outro lado e os seus argumentos e de procurar dialogicamente soluções mais igualitárias para um mundo contemporâneo, cada vez mais complexo. Por outro, porque no fim de contas, contribui paradoxalmente também para ampliar a voz daqueles que difundem discursos discriminatórios, explorando as contradições em que os diferentes paradigmas de igualdade se vão enredando.

Em democracia, o diálogo é essencial para procurar respostas moderadas às questões suscitadas pela igualdade. Porque, por exemplo, mesmo que se queira defender uma perspetiva naturalista, não se pode prescindir, no mundo atual (altamente sexualizado e com acesso fácil a pornografia), de um consenso alargado em relação à necessidade de fornecer aos jovens uma educação sexual séria, que lhes dê a conhecer nomeadamente os problemas da gravidez adolescente ou os meios para evitar a contração de doenças sexualmente transmissíveis. E também, porque – mesmo que se enverede por uma perspetiva de libertação da biologia – nunca se pode prescindir do respeito por quem pretenda seguir, no exercício da sua liberdade, um caminho de recusa de artificialização dos mecanismos reprodutivos.

Para além disto, se estes dois paradigmas simplesmente recusam a possibilidade de diálogo, o tema da igualdade corre também o sério risco de ficar à mercê de interesses oportunistas. Interesses estes que não se coíbem de jogar o mesmo jogo de quem se aproveita da igualdade para ganhar votos, para a troco de outras vantagens – mediáticas ou comerciais – a pôr em causa. Veja-se o fenómeno Andrew Tate, promotor, em larga escala, de um discurso de ódio misógino. Ou, em sentido oposto, o fenómeno da misandria (que sustenta a ideia da dispensabilidade masculina), com discussão em 2020 em França a propósito do livro “Eu odeio homens” (“Moi Les Hommes, Je Les Déteste”) de Pauline Harmange.

É tempo, pois, de pensar se queremos continuar a pôr as coisas nestes termos.

.

NewsItem [
pubDate=2023-06-05 17:04:29.694
, url=https://expresso.pt/opiniao/2023-06-05-Uma-mulher-e-um-homem-como-todos-os-outros--6ebaaad3
, host=expresso.pt
, wordCount=991
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2023_06_05_1712485591_uma-mulher-e-um-homem-como-todos-os-outros
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]