expresso.ptJosé Conde Rodrigues - 5 jun. 10:56

O momento político e a função presidencial

O momento político e a função presidencial

Estando nós, no dizer de muitos, à beira de uma nova crise política a reclamar a intervenção da função presidencial, como evoluirá a função e o desempenho do órgão de soberania Presidente da República?

Na discussão corrente no nosso espaço público, a propósito do exercício menos feliz das competências do Governo, bem como do consequente exercício, mais ou menos exacerbado da função presidencial, muitos confundem o regime político com o sistema político e o discurso sobre a qualidade ou degradação do primeiro, com a eventual necessidade de introduzir melhorias no segundo.

Ora a diferença é fundamental e evitar a dita confusão, mais importante ainda, se não queremos deitar fora o bebé com a água do banho, cedendo à maré populista contra o regime, quando apenas queremos melhorar o sistema.

Ou seja, é possível e desejável conservar o regime democrático, os direitos fundamentais, a separação de poderes e aceitar discutir o modelo de governação mais adequado aos tempos em que vivemos e aos desafios que temos pela frente, onde se inclui, naturalmente, o questionamento da função presidencial.

Resumindo, na atualidade, podemos ter regimes: totalitários, autoritários ou democráticos. Já os sistemas podem ser: presidenciais, semipresidenciais ou parlamentares.

Vejamos então, ainda que sumariamente, o que poderá estar em causa num salutar debate sobre a natureza e o papel do Presidente da República no nosso sistema político, nomeadamente, na resolução de crises políticas ou de disfuncionamento do exercício do poder executivo.

O Presidente da República não é, no nosso quadro constitucional, um órgão de governo direto, assistindo-lhe, apenas, o papel de moderador ou árbitro, perante os outros dois órgãos da nossa tríade de governação política: Parlamento e Governo.

O Governo, por sua vez, não depende politicamente do Presidente da República, mas sim do Parlamento e tem competência exclusiva na condução da política geral do país. Tal significa que a relação entre o Governo e o Presidente da República não é funcional, mas de responsabilização e confiança meramente institucional.

Já o Parlamento legisla e fiscaliza a ação do Governo, não pode demitir o Presidente da República, mas pode aprovar moções de censura ou de não confiança que acarretam, necessariamente, a demissão do Governo. Ao mesmo tempo, a dependência do Governo perante o Parlamento não exige um apoio maioritário, mas apenas que não haja oposição maioritária.

Importará relembrar que o nosso sistema evoluiu, entretanto, face ao figurino inicial plasmado na Constituição de 1976. Com efeito, com a revisão constitucional de 1982, desapareceu a responsabilidade política do governo perante o presidente, afastando, desse modo, embora ligeiramente, o nosso sistema da sua inspiração francesa (na clássica designação de Maurice Duverger).

Desde aí, todavia, quatro maiorias absolutas para o Parlamento acentuaram a dimensão parlamentar do nosso sistema político. Ou seja, face a governos amplamente suportados numa forte maioria parlamentar, diluiu-se a componente presidencial do sistema, ao ponto de muitos terem considerado que o nosso modelo caminhara para um parlamentarismo de chanceler à alemã.

Ao contrário, nos últimos anos, incluindo no atual ciclo político, tem-se acentuado o semipresidencialismo à francesa. Isto é, a preponderância, no nosso sistema político, do Presidente da República face ao Governo. Assistiu-se a um maior ativismo e presença política do Presidente, reunindo diretamente com ministros, com responsáveis por serviços públicos, acompanhando diretamente a gestão política interna, e perdendo, do mesmo passo, alguma da tradicional distância simbólica, enquanto último pilar do sistema político.

Assim, estando nós, no dizer de muitos, à beira de uma nova crise política a reclamar a intervenção da função presidencial, ainda que perante um Governo maioritário gozando de amplo apoio parlamentar, como, independentemente da personagem que atualmente a incarna, evoluirá a função e o desempenho do órgão de soberania Presidente da República?

Será que os órgãos políticos e o seu funcionamento são imunes à personalidade do seu titular? O adágio popular diz que o hábito faz o monge, será que aqui o titular faz o órgão? E face à nossa história de personalização do poder, assente na figura singular do “chefe”, será que a imagem do poder, não se transferirá, definitivamente, para o Presidente da República?

Apesar de considerar o atual modelo semipresidencial um híbrido, que não ajuda à legitimação responsável de quem governa, a minha resposta a estas questões só pode ser negativa. É que, num Estado de Direito, a vontade do titular nunca se deve sobrepor à norma, sob pena de a sombra vetusta do decisionismo, a mera vontade de poder levar à mudança, aí sim, não do sistema, mas do próprio regime, abrindo caminho a uma qualquer forma de ditadura.

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