sol.sapo.ptJosé António Saraiva - 4 jun. 00:00

Na cabeça de Marcelo

Na cabeça de Marcelo

Marcelo Rebelo de Sousa: enquanto a situação não se clarificar, estará de mãos atadas


Vendo-me como um oráculo, muitas pessoas perguntam-me: «Então, o Presidente vai demitir o Governo?».
Os portugueses, em geral, são pouco afirmativos.
Refugiam-se com frequência em respostas dúbias, do género «Depende de vários fatores…».
Eu, pelo contrário, sempre gostei de ser direto.
De dizer ‘sim’ ou ‘não’.
E assim, às pessoas que me fazem aquela pergunta, respondo taxativamente: «Não, Marcelo Rebelo de Sousa não vai demitir o Governo nem dissolver a Assembleia».


Embora o Presidente da República, num regime como o português, seja de certo modo um rei sem coroa, com poderes semelhantes aos dos monarcas constitucionais (com a diferença de ser escolhido em eleições gerais e não alçado ao lugar pela hereditariedade), era mais fácil nessa altura demitir-se um primeiro-ministro do que é agora.
O sistema funcionava assim: em períodos de grande turbulência, o chefe do Governo podia pedir ao Rei meios excecionais, que muitas vezes se traduziam na dissolução do Parlamento - ficando a governar, como se dizia, ‘em ditadura’.
Em geral, o monarca acedia ao pedido do primeiro-ministro, mas quando o queria despachar recusava-lhe a pretensão. E ele demitia-se.
O Rei escolhia então outro chefe do Governo, que podia ser ou não o líder da oposição, e só depois dissolvia o Parlamento e convocava eleições.
E aqui residia o vício do sistema.
Quando se realizavam as eleições, o novo Governo já estava em funcionamento há meses - e o povo invariavelmente dava-lhe o seu voto. 
Não eram, portanto, exatamente eleições - eram plebiscitos.
Na prática, os primeiros-ministros eram, portanto, escolhidos pelo Rei e não pelo povo. O povo limitava-se a ratificá-los.


Hoje, o sistema é diferente. O Presidente da República pode demitir o Governo, mas a seguir tem de convidar o partido que dispõe da maioria parlamentar a formar novo Executivo; ou então dissolve o Parlamento e convoca eleições.
Ou seja: o primeiro-ministro nunca é escolhido pelo Presidente mas sim pelo eleitorado.
E é este o grande perigo para um Presidente da República que afasta um Governo do poder: se o eleitorado votar de novo nesse partido, o Presidente fica em muito maus lençóis.
Perde completamente a autoridade.
Assim, o Presidente só pode demitir um Governo e dissolver um Parlamento quando tiver a certeza absoluta de que o país, chamado a votar, vai fazer uma escolha diferente.
No caso atual, Marcelo Rebelo de Sousa só o fará se tiver a certeza de que o Partido Socialista não ganhará as eleições.
E que, além disso, existe uma alternativa consistente.
Não basta dizer «Em democracia há sempre alternativa»; é preciso que ela exista mesmo e seja minimamente sólida.
Caso contrário, o Presidente será acusado de demitir o Governo para criar uma situação pior do que a que estava.


Escrevi há duas semanas que o PS pode dar um grande trambolhão eleitoral.
E as eleições regionais em Espanha vieram dar a essa hipótese uma maior probabilidade.
Os partidos socialistas estão em queda livre na Europa - e a Portugal também chegará esta onda.
Os sucessivos casos em que o PS se tem visto envolvido, dando a sensação de que usa o Estado em seu proveito em vez de o servir, podem contribuir para uma grande surpresa.
Mas Marcelo Rebelo de Sousa tem a certeza disso?
E a oposição está em condições de assumir o Governo?
O PSD chegará à maioria absoluta sozinho ou precisará da ajuda do Chega?
E Marcelo ficará confortável se demitir o Governo socialista para levar o Chega para a área do poder?
Duvido.


Por isso, enquanto a situação não se clarificar, o Presidente da República não demitirá o Governo nem dissolverá o Parlamento.
Nesta altura, Marcelo Rebelo de Sousa está de mãos atadas. 
E não por causa, como alguns dizem, da CPI da TAP - que cairia caso o Parlamento fosse dissolvido.
A CPI já deu o que tinha a dar com as audições de Galamba, Eugénia Correia e Frederico Pinheiro.
O problema de Marcelo não é a TAP: é mesmo ter a certeza de que as eleições não o desautorizarão.
Se fosse Rei, era mais fácil: forçava a demissão de António Costa, escolhia Montenegro, marcava eleições para daqui a uns meses e estas confirmariam o novo primeiro-ministro.
Assim, a incerteza é grande e Marcelo Rebelo de Sousa nunca correrá esse risco. 
 

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