observador.ptObservador - 4 jun. 00:02

A culpa em Portugal, morre sempre solteira

A culpa em Portugal, morre sempre solteira

Inicia-se uma regressão civilizacional para dar início à “política de terra queimada” por parte de profissionais duvidosos a realizar atos terapêuticos reservados aos profissionais certificados.

Não é um tema novo, mas continua a ser o tópico do dia, a Saúde Mental. Aliás, arrisco-me a ser repetitiva e muito pouco criativa, mas partilho da mesma preocupação de muitos psicólogos e psiquiatras que têm vindo a público expressar, de forma insistente, que vivemos uma “nova” pandemia, a da saúde mental. Existem imensos estudos publicados, quase diariamente, em contexto nacional sobre o Stress, a Ansiedade e o Síndrome de Burnout cujos resultados não são nada positivos (Laboratório Português dos Ambientes de Trabalho Saudáveis e Ordem dos Psicólogos). De igual forma, a nível internacional também este tema é comummente estudado, como, a título de exemplo, a investigação publicada pela SATA, em 2022, na qual se constata que a saúde mental da população europeia está em declínio e que a preocupação com os jovens deve ser redobrada na medida em que estes são o grupo mais vulnerável ao Síndrome de Burnout.

Neste contexto, existem imensas organizações nacionais e internacionais que tentam conter os danos que emergem de forma descontrolada na sociedade, com profundo impacto na saúde mental e no bem-estar das pessoas, das suas famílias e da sociedade de forma transversal. Nesta esforço de “guerra”, a Organização das Nações Unidas (ONU), já no ido ano de 2015, entre os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que dão suporte à Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável Global se refere, no seu objetivo 3, relativo à Saúde, a promoção do Bem-Estar e da Saúde Mental de todas as pessoas que pertençam aos estados-membros representados. As organizações também são envolvidas de forma ativa, no sentido de promoverem em contexto organizacional as melhores práticas em matéria de Bem-Estar e Saúde Mental.

Se existem pessoas a sofrer é vital contextualizar algumas das múltiplas causas que estão na origem deste sofrimento, face aos constrangimentos atuais. Por um lado, as empresas são “culpadas” por levar os seus trabalhadores à exaustão, porque os ritmos de trabalho são muito exigentes, os níveis de stress são elevados e, concomitantemente aumentam os níveis de ansiedade que, em situações extremas, podem conduzir ao Síndrome de Burnout e a doenças do foro mental (é um fato verificável nos vários estudos realizados). Mas, por outro lado, também encontramos as chefias, os líderes, as lideranças tóxicas que conspiram sistematicamente contra o bem-estar e a saúde mental dos trabalhadores. Mas, nesta cascata de “culpados” também emergem os colegas de trabalho que podem ser responsáveis por gerar climas socialmente pouco saudáveis (suporte social), o que é fundamental para trabalhar com qualidade. Contudo, se é verdade que as organizações são responsáveis por gerar ambientes de trabalho saudáveis e seguros para as suas pessoas, também é verdade que a escassez de recursos gera desafios para estes sistemas vivos que necessitam de recursos financeiros e humanos para evoluírem e cumprirem o seu propósito.

Por último, mas não menos importante, temos um conjunto de fatores contextuais transversais às organizações e às pessoas com diferentes níveis de impacto: a elevada carga fiscal, a inflação galopante, o aumento das taxas de juro, os salários baixos, a crise económica, a crise política, a instabilidade social, o medo e o espectro dos despedimentos em massa. Todos estes fatores, de forma cumulativa, agudizam o mal-estar e funcionam como um campo fértil para a proliferação das doenças mentais, para a redução do bem-estar individual e para um mercado de trabalho com relações de poder de profunda desigualdade. Desta forma, é tentador e extremamente fácil identificar culpados. Aliás, arrisco a dizer que a lista seria longa, mas infrutífera na medida em que a responsabilidade pela saúde mental das pessoas e o seu bem-estar tem de ser acautelada a montante com iniciativas credíveis e com planos de ação efetivos por parte do Estado português.

Mas, infelizmente para os portugueses, vivemos dias negros para a saúde mental, na medida em se iniciou um momento de profunda clivagem entre as políticas emanadas pelo estado e a Ordem de Psicólogos Portugueses, entidade que zela pela proteção dos indivíduos e pela promoção do Bem-Estar e da Saúde Mental. A razão deste clivagem prende-se com a perda de exclusividade na prática de atos terapêuticos, reservada até então, aos psicólogos reconhecidos oficialmente pela Ordem dos Psicólogos. O governo na nova legislação que vai ser aprovada em breve estende esta competência, a todos os profissionais das áreas comportamentais que assim o entendam, contrariando a prática.

Inicia-se assim, um momento de regressão civilizacional para dar início à “política de terra queimada” por parte de profissionais duvidosos a realizar atos terapêuticos que até então estavam reservados aos profissionais certificados, com profissão regulada, e devidamente acreditados para o efeito, obedecendo a código deontológico próprio. Não é uma situação desejável, porque pode colocar em causa o futuro da saúde mental das pessoas, na medida em que, experiencialismos sustentados em formações ad-hoc, não raras vezes, são altamente limitativos naquilo que se pretende ser uma abordagem holística à saúde das pessoas, sem simplismos na abordagem nem na terapêutica (um faroeste à portuguesa).

Nesta medida, acredito que a responsabilidade pela resolução do problema de Saúde Mental e do aumento do Bem-Estar Individual e Organizacional tem de ser assumido numa lógica partilhada, focada em soluções criativas para resolver um problema global e não com base na desresponsabilização, na distribuição da culpa e na criação de soluções ineficazes para a resolução do problema. Mas todos sabemos que em Portugal a “culpa morre solteira”. Não é minha intenção ser tendenciosa do ponto de vista político, mas apenas refletir sobre uma das maiores preocupações dos nossos dias, o Bem-Estar e a Saúde Mental. Contudo, o futuro não parece ser auspicioso para os portugueses! Já agora não sou psicóloga, mas reconheço a importância da profissão e revejo-me na sua indignação.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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