dinheirovivo.pt - 27 mai. 08:00
Há 200 milhões para modernizar a saúde, com o foco no doente
Há 200 milhões para modernizar a saúde, com o foco no doente
Joaquim Cunha, do Health Cluster Portugal, explica os desafios da transformação profunda que o setor tem de levar a cabo. E como a tecnologia e os dados vão ajudar. Pacto de Inovação é ferramenta-chave.
"Temos de ter uma saúde radicalmente diferente, é a única aposta que podemos fazer, porque este modelo, concebido após fim da II Guerra Mundial e que teve grandes vantagens, está a chegar ao fim." É a visão de Joaquim Cunha, diretor executivo do Health Cluster Portugal, que defende um sistema de saúde com a pessoa no centro. E explica o papel das Agendas Mobilizadoras em curso para atingir esse objetivo de transformar a saúde de um sistema orientado para a doença aguda para uma resposta verdadeiramente virada para a saúde, para a prevenção, para a personalização, um serviço verdadeiramente focado nas necessidades da sociedade como ela é hoje e capaz de atender a desafios como a prevalência de doença crónica e o estímulo ao envelhecimento ativo e com qualidade de vida.
"Os nossos hospitais e o SNS estão orientados para responder a problemas. Mas hoje o peso da saúde é a doença crónica, que consome mais recursos financeiros e tem implicações de perda de qualidade de vida. A forma de tratar tem de ser diferente, temos de criar uma saúde não hospitalocêntrica - que aí permaneçam apenas situações graves, agudas, - mas distribuída quase porta-a-porta", refere Joaquim Cunha, ao Dinheiro Vivo. E exemplifica com as possibilidades garantidas pela tecnologia e inovação, pelos dados e Inteligência Artificial: "Os cidadãos, em casa ou a trabalhar, poderão estar monitorizados, o que permitirá muita aposta na prevenção e acompanhamento ao momento e uma melhor resposta, com consequências positivas para uma maior sustentabilidade do sistema."
Estando Portugal - e a Europa em geral - condenado a gerir os efeitos do envelhecimento populacional, a equação que se põe é como tratar melhor mais gente, com maior carga de doença. "E teremos de o fazer com menos recursos", vinca o especialista, lembrando até que "o reforço financeiro de quase 50% na saúde não tem traduzido resultados". "Porque estamos a fazer tudo errado", conclui, apontando a tecnologia como resposta para melhorar a gestão. "Temos já muitas ferramentas boas e inovadoras nos cuidados, mas na gestão ainda não, e é essa a mudança de paradigma necessária."
Um bom exemplo é o espaço que pode ser ocupado pelos dados, com uma abordagem digital e uso intensivo, sobretudo em utilização secundária. "Todos os dias, geramos quantidades astronómicas de dados (exames, análises, etc.) com interesse de diagnóstico e decisão médica - essa é sua utilização primária; mas cada vez mais esses dados, anonimizados, podem ser usados em conjunto (data lakes), de forma a conseguir abordagens muito mais interessantes até para a gestão da saúde. A epidemiologia, por exemplo, pode conseguir dar passos muito mais rápidos, quer ao nível da ciência quer da gestão e financeira."
Saúde com o cidadão no centro
Este é o retrato do que se impõe como missão do Pacto de Inovação das Agendas Mobilizadoras para a Inovação Empresarial do PRR. A expressão pode parecer complexa, mas a tradução é simples: saúde inteligente. Ou smart health, no original, que compreende a aplicação de todo o potencial digital à saúde, usando as mais modernas técnicas de informação como fio condutor. Como é requisito das Agendas Mobilizadoras, também aqui se juntam universos distintos - empresas, academia, investigação... - com um mesma meta no horizonte: gerar produtos e serviços que permitam a transformação do setor da saúde. "Beneficiamos de um grande número de parceiros e de 90 milhões de euros de investimento global, capazes de gerar 95 novos produtos e serviços e 350 empregos qualificados", elenca Joaquim Cunha.
Esta agregação de valor também abre portas a outra característica do Pacto, os "ensaios clínicos pensados com futuro". Universidades, centros de investigação, empresas e afins têm conhecimento que precisam ou ganhariam em desenvolver e podem aqui acrescentar serviços ou produtos, materializar os objetivos. "O que foi vendido nas Agendas foi exatamente isso: pegar em projetos e conhecimento que precisam de parceiros, de investigação, para serem levados para o mercado, com o objetivo de criar negócios, faturação, exportação."
"Falta de avaliação está a matar-nos"
Outra dimensão que se abre com o pacto e a centralidade no cidadão é a possibilidade de encarar o doente como consumidor, conferindo-lhe poder de escolha quanto aos serviços que recebe e onde os recebe. O que passa por medir a eficácia dos serviços de saúde não apenas pelo ponto de vista clínico mas sobretudo valorizando o lado da pessoa. É aquilo que Joaquim Cunha identifica como value-based healthcare: medir os resultados em saúde pela perceção do doente. Um exemplo de simples compreensão: um bom resultado médico de uma intervenção à próstata passa por curar a doença; mas na perspetiva do doente, consegui-lo sem ficar incontinente ou impotente terá muito mais valor.
"Pôr o doente como consumidor permitirá dar-lhe melhores cuidados e isso passará também por qualificar o serviço e abrir caminho no tema da liberdade de escolha", resume o responsável do Health Cluster. E ter à escolha serviços prestados em todo o sistema, públicos, privados ou sociais, potenciando os melhores em cada disciplina e prática, permitirá avançar brutalmente nesse setor da saúde centrado na pessoa, aonde se quer chegar.
E o preconceito ideológico ultrapassa-se como? "Há uns tempos tivemos um ataque crónico de ideologia neste processo. Agora, acho que isso acabou e essa carga tem de ser retirada. Eu recuso separação público-privado", frisa Joaquim Cunha. "O que há é boa gestão e má gestão, bons e maus tratamentos. Se a saúde privada tem resultados, não posso pô-la de parte simplesmente porque não é pública. O sistema público não permite premiar os bons e puxar pelos maus - isso está a matar-nos aos poucos. O SNS tem de ser o coração e o Estado tem um papel de regulador. E na prestação de cuidados, talvez ganhássemos todos se houvesse mais concorrência", diz, admitindo que há aqui nuances, como a interioridade e a necessidade de proteção dos mais frágeis. "A palavra chave é "acesso". É isso que temos de garantir e com qualidade, para o que a avaliação é essencial."
O projeto da inovação na saúde já arrancou com os 88 parceiros, em velocidades diferentes, estando agora a atingir velocidade cruzeiro, revela ainda o responsável. E garante: "Há mais três Agendas nossas parceiras - em que o Health Cluster não teve o envolvimento que tem nesta, mas é positivo que existam - e se somarmos o investimento das quatro estamos a falar de perto de 200 milhões de euros, que se somam ao envelope de 300 milhões que tem o Ministério da Saúde do PRR para os próximos três anos. São 500 milhões para modernizar a saúde, com o doente no centro. Se daqui a quatro anos as coisas não forem radicalmente diferentes do que são hoje, não temos desculpa."