Observador - 19 mar. 00:17
O carro como catástrofe
O carro como catástrofe
Não sei se é do vidro pára-brisas mas vejo os espíritos dos outros e o meu quando nos cruzamos no trânsito. E são maus. Os dos outros e o meu. Consigo vislumbrar, sobre os ombros, demónios diversos.
Para mim evitar andar de carro não é uma preferência; é evitar também não apostatar da pouca fé que tenho. Se for exposto a muita condução na cidade passarei a duvidar que haja salvação para um mundo destes. Olharei para as pessoas que se cruzarão comigo no trânsito como implacavelmente merecedoras do Inferno, bestas que são. E não serão apenas elas, bestas que são, que merecerão o Inferno—serei eu também. Andar de carro na cidade apenas prova que as chamas do Hades serão espirituais e físicas mesmo.
Tenho carta de condução há mais de duas décadas. Graças a Deus, nunca me magoei em nenhum acidente e nunca me envolvi em grandes brigas rodoviárias. Não há, portanto, um cadastro trágico que possa desenrolar e que justifique as conclusões teológicas e existenciais que me têm levado à determinação que partilhei de evitar andar de carro na cidade. Mas uma certeza tem crescido nestes mais de vinte anos e que me leva, sempre que posso, a preferir não pôr as mãos no volante: quando o faço, ganho um raio-x para as almas dos outros e para a minha.
Não sei se é do vidro pára-brisas mas vejo os espíritos dos outros e o meu quando nos cruzamos no trânsito. E são maus. São maus os espíritos dos outros e é mau o meu espírito. Consigo vislumbrar, sobre os nossos ombros, demónios diversos. Esses enviados malignos segredam-nos recomendações tenebrosas sem que nos apercebamos, e são especialmente bem sucedidos porque, julgando nós que ao conduzir fazemos algo intermédio como apenas ir do ponto A para o ponto B, acabamos fazendo uma coisa final que é encomendar a nossa alma às trevas. O trânsito é tanatológico.
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