jn.pt - 19 mar. 16:50
A vida quotidiana de uma mulher
A vida quotidiana de uma mulher
"Jeanne Dielman, 23 quai du commerce, 1080 Bruxelles", filme de Chantal Akerman que foi recentemente considerado o melhor de sempre, está disponível na plataforma Filmin.
E, de repente, sem aviso prévio, um bom filme, mesmo excelente, realizado em 1975 por uma cineasta belga, com cerca de três horas e meia, torna-se "o melhor filme de todos os tempos", no inquérito levado a cabo pela prestigiada revista britânica "Sight & Sound" no ano passado, na sequência de outros realizados regularmente há várias décadas.
"Jeanne Dielman, 23 quai du commerce, 1080 Bruxelles" sucede assim a "Citizen Kane /O mundo a seus pés" (1941), de Orson Welles, e a "Vertigo /A mulher que viveu duas vezes" (1958), de Alfred Hitchcock, com a curiosidade de entre estes dois filmes distarem 17 anos, os mesmos que separam o filme de Akerman do de Hitchcock.
Não será talvez mera coincidência, refletindo isso sim a diferença de idades, e logo de perspetivas, sobre o cinema e sobre a vida, dos inquiridos. Aliás, o inquérito de 2022 foi bastante aberto, e a escolha, decorrente do voto de várias centenas de pessoas em todo o mundo, de "Jeanne Dielman..." para o melhor filme de todos os tempos, reflete os tempos, mas aqueles em que vivemos.
O que importa, no entanto, neste espaço, é a possibilidade de vermos agora tranquilamente em nossa casa este filme sobre o qual recai agora uma acrescida curiosidade. E se todos os argumentos são válidos para ver bom cinema, então que seja "o melhor de todos os tempos".
Chantal Akerman (1950-2015) foi uma assumida feminista, assinou várias obras de temática "queer" mesmo antes de a designação ser inventada. Mas fez também filmes de época, comédias românticas contemporâneas, documentários de observação, obras experimentais que abriram portas. Fê-lo sempre com uma enorme liberdade, recusando o dogmatismo das escolas de cinema ou de "explicar" os seus filmes, que queria que se explicassem por si mesmos.
Uma artista e cineasta de eleição, Akerman tem realmente em "Jeanne Dielman..." um dos seus filmes de bandeira, como hoje se diz. Uma obra de enorme rigor e radicalidade, desmontando arquétipos pela sua utilização exaustiva e contando com a cumplicidade de Delphine Seyrig para nos oferecer o quotidiano de uma dona de casa viúva de Bruxelas, entre o filho que tem de criar, os rituais monótonos da vida de uma doméstica, os "biscates" que o seu corpo autoriza para conseguir chegar ao fim do mês. É um filme único, que pode e tem que ser visto. Em sua casa, como Chantal Akerman não poderia imaginar em 1975.