ionline.sapo.ptionline.sapo.pt - 28 jan. 12:47

De que lado estamos nós?

De que lado estamos nós?

O que se fez não foi salvaguardar a aprendizagem escolar dos alunos – nem resguardar alimentação ou cuidado – mas sim arrasar com o direito democrático à greve. Isto, obviamente, é um golpe de força – engana-se quem pensa que está dirigido unicamente para os professores ou funcionários públicos. É contra o país.

Quando falo com os meus filhos sobre a importância fundamental da Escola explico-lhes que há essencialmente duas formas de aprender na vida: apoiando-nos no que os nossos melhores professores, pais e mestres nos ensinaram – e eles vão transmitindo o saber acumulado  ao longo da história da humanidade– ou às custas dos nossos erros individuais, por tentativa e erro, ou seja, caindo, sozinhos. E meditar sobre a dor. Toda a sociedade portuguesa e todos os sindicatos de trabalhadores, de qualquer sector, são chamados a tomar posição sobre a decisão ontem decretada – “serviços mínimos” – que aniquila o direito democrático à greve e reforça socialmente a extrema-direita. Aprender ou cair. Amor ou dor. Juntos ou sós: esta é a escolha.

Por que falo em aprender caindo? Porque hoje são os professores. Mas isto, proibir greves quando elas são greves de massas de facto e não fantasias de paralisação, é o novo padrão das sociedades nacionais onde há imensa concentração de riqueza e de pobreza em polos contraditórios, assunto que, aliás, vem em qualquer manual elementar de ciência política: em países e momentos de baixos salários o Estado, em vez de ceder em direitos básicos, aumenta o nível de repressão política. Democracia formal, com ditadura nos locais de trabalho, e restrição de direitos na luta por direitos. Ora, é bom recordar que o assim-chamado Estado de Direito foi justamente conquistado na luta por direitos contra as decisões do Estado. Coloca-se como urgência não só a luta por salários decentes e vidas dignas, com horários que permitam respirar, no mínimo, como está aí a luta pelo direito a defender direitos.

 E não começou hoje. Começou no Governo da Geringonça, com o beneplácito de toda a direita organizada, representada pelo matrimónio político de conveniência de Costa-Marcelo. Quando na AutoEuropa os operários foram obrigados – pela lei da laboração continua aprovada pelo Estado – a trabalhar compulsoriamente aos Domingos e tiveram como prenda extra, depois da greve, o acesso a uma creche ao fim de semana e o anúncio da recandidatura do PR por Costa – comunicada, que cinismo!, numa conferência de imprensa justamente às portas da AutoEuropa –; quando os estivadores de Setúbal receberam um autocarro de fura-greves escoltados por polícias de choque; quando a greve cirúrgica da enfermagem foi perseguida, atacado o fundo de greve (revelado depois perfeitamente legal), e daí proibida de facto, com uma requisição civil; quando a greve dos motoristas de matérias perigosas, que lutavam por 900 euros em 15 horas de trabalho continuo foi arrasada com uma requisição militar – sim, militares substituíram os grevistas; quando no primeiro dia do Decreto do Estado de Emergência na pandemia foram demitidos os 150 estivadores do Porto de Lisboa e, com esse decreto, impedidos de fazer greve – estão despedidos até hoje.  Foi nestes casos que se iniciaram as duras medidas antidemocráticas contra quem trabalha e é essencial ao país.

Boaventura de Sousa Santos então – apoiante público da Geringonça – chamou a atenção no Público para estas greves, “inorgânicas” e “radicalizadoras”, as quais seriam, em suas palavras, o primeiro inoculador da extrema-direita em Portugal. As três hipotéticas portas de entrada do fascismo apresentadas pelo catedrático foram, ipsis verbis, a “contestação social”, os “idiotas úteis” e, enfim, as “coligações existentes”.

O que o tempo mostrou foi que não podia estar mais errado. Ontem, quando foi decretada a limitação drástica do direito de greve todas as televisões davam em direto o congresso nacional do Partido Chega. Já o STOP fez um comunicado, esta semana, dizendo que o Chega não era bem-vindo à manifestação. Que não toleram como sindicato ideias racistas e antidemocráticas – e assim foi o primeiro sindicato em Portugal a fazê-lo. Sabemos por documentos oficiais e pela investigação jornalística do Portal 74 que a extrema-direita tem força nos aparelhos repressivos do Estado – PSP e GNR – os mesmos aparelhos usados para obstar as greves. A nova extrema-direita em Portugal não nasceu das organizações de trabalhadores, dos dirigentes sindicais ou das coligações de esquerda. Nasceu do ventre do PSD e CDS.

Esta ultra-direita anti-25 de Abril, nas vésperas de completar os seus 50 anos, é promovida nas televisões e nos jornais e combatida pelos sindicatos e dirigentes em luta de massas por direitos e greves consequentes, que são eficazes e são a base da democracia. É contra a greve – e contra os direitos – que o Estado se coloca.

As crianças não comem bem porque os pais ganham vergonhosamente mal com os salários baratos decididos por governantes e empresários, os alunos com necessidades especiais têm faltas de tutores, psicólogos e especialistas por decisões erradas de ministros e secretários de Estado; a escola publica está degradada e os professores sem respeito e dignidade porque os sucessivos governos os espoliaram e vilipendiaram anos a fio. Proibir a greve com serviços mínimos – que só deviam existir em casos de emergência de saúde, etc. – é justamente o tipo de decisões que vão aconchegando a ideologia da nova extrema-direita. Hitler chegou ao poder quando o partido-irmão do PS na Alemanha, o SPD, fechava os olhos à repressão aos trabalhadores por parte dos jagunços da ultra-direita nazi, recrutados no Exército e pagos por empresários com medo das greves. O Governo não cumpre os mínimos e aconchega o próprio Chega. Os sindicatos “inorgânicos” de luta – este nome calunioso para falar de sindicatos independentes –, protegem-nos do Chega. Chega que organicamente (conceito adequado da ciência política) está ligado aos aparelhos estatais da coerção e tolerado (ou promovido) pelos aparatos mediáticos de consenso.

Pela democracia, em defesa dos serviços públicos e do próprio direito à greve, foi o que disse um sindicato independente, o STOP, que tem sido de uma decência ímpar na sua luta dos profissionais de educação e no combate à esta extrema-direita – que tentou cavalgar a luta e foi convidada a sair pelo Sindicato – uma lição de educação política. Talvez a mais importante que nós e os nosso filhos receberam em tantos anos.

Raquel Varela, historiadora, Professora FCSH-Universidade Nova de Lisboa

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