www.publico.ptpublico.pt - 28 jan. 21:01

Vamos apagar as luzes e contar estrelas para ajudar a fazer ciência?

Vamos apagar as luzes e contar estrelas para ajudar a fazer ciência?

A luz artificial das cidades afecta animais e faz com que as estrelas já sejam quase invisíveis. Ciência-cidadã foi essencial para analisar dados globais – e qualquer pessoa pode participar.

O céu nocturno está cada vez mais brilhante, mas essa luz artificial que nos ilumina na Terra impede-nos de ver as estrelas sobre nós. Para ajudar a medir o nível de poluição luminosa que está a roubar o céu estrelado às cidades e a desorientar animais, um grupo de cientistas criou o projecto de ciência-cidadãGlobe at night” (Globo à noite), que conseguiu reunir dados enviados por mais de 50 mil pessoas por todo o mundo – e qualquer pessoa pode participar. Também em Portugal, na ilha da Madeira, há um projecto sobre poluição luminosa que quer envolver os cidadãos. Quem quer ajudar?

Os cientistas alertam que não existem dados sobre a visibilidade do céu nocturno a nível global e que os satélites não têm precisão suficiente para este tipo de medições, até porque não detectam luz com comprimentos de onda mais reduzidos, refere um estudo publicado recentemente na revista Science. E essa foi uma das razões para que a ciência-cidadã e o “poder das pessoas” fossem tão aliciantes para este grupo de cientistas.

Nas últimas décadas, tornou-se comum o planeta continuar luminoso mesmo depois de anoitecer; em muitas zonas da Terra já não há uma transição completa da claridade do dia para um céu estrelado, como contextualiza o estudo. Esta iluminação artificial corresponde a poluição luminosa (não conta a luz das estrelas nem da Lua), mas é difícil de medir.

Como fazer parte do projecto Globe at Night?
  1. Consultar a página do projecto para saber quais as datas assinaladas e quais as constelações que serão observadas;
  2. Nessas datas, dirigir-se ao exterior uma hora depois do pôr-do-sol, sem Lua no céu, e deixar que os olhos se habituem à escuridão durante uns dez minutos até à primeira observação;
  3. Detectar a constelação ou usar uma aplicação para visualização do céu nocturno para a encontrar;
  4. Preencher a página de relatório do Globe at Night (página em inglês); num telemóvel smartphone, a página deverá preencher os dados da hora, data e localização de forma automática;
  5. Escolher o mapa de luminosidade que mais se adequa ao que observou no céu nocturno;
  6. Seleccionar a quantidade de nuvens no céu;
  7. Submeter os resultados.

Assim, para ajudar a fazer ciência, foram utilizados dados de observações feitas a olho nu por 51.351 participantes de todo o mundo (de 19.262 locais do planeta – a maior parte na América do Norte e na Europa), anotadas em noites sem nuvens e sem luar, de 2011 a 2022. Tendo em conta as diferentes localizações e anos em que foram feitos os registos, os investigadores usaram ainda um modelo de luminosidade do céu feito com dados recolhidos por satélite.​

Os milhares de cidadãos procuraram estrelas sem instrumentos de observação (além dos próprios olhos) e as conclusões não surpreendem: a quantidade de estrelas visível à noite é cada vez menor, e o caso é ainda mais grave nas cidades. De há dez anos para cá, o céu tem-se tornado 7 a 10% mais brilhante a cada ano, conclui o estudo. Na Europa, o brilho nocturno está a aumentar 6,5% por ano; na América do Norte, a taxa é mais elevada: 10,4% por ano. Estamos perto de não haver estrelas no céu a dourar o caminho.

PÚBLICO - Aumentar Ficar a ver estrelas (no bom sentido)

“O ritmo a que as estrelas se estão a tornar invisíveis para pessoas em ambientes urbanos é dramático”, afirma Christopher Kyba, principal autor do estudo, coordenado pelo Centro de Investigação para as Geociências GFZ alemão e pelo Universidade de Bochum, também na Alemanha, e ainda com o apoio da fundação norte-americana NoirLab.

Foto Nelson Garrido

O projecto NoirLab começou em 2006 nos Estados Unidos e qualquer pessoa pode participar neste programa, independentemente da sua localização. O método está a resultar, avalia o autor Christopher Kyba: “As contribuições de pessoas individuais funcionam como se fossem uma rede de sensores global, tornando esta nova ciência possível”.

Os resultados são positivos, mas a ciência-cidadã também tem limitações. As tendências traçadas acabam por estar dependentes de um maior número de registos em determinadas regiões (na Ásia, por exemplo, quase todas as contribuições são feitas apenas num único país, o Japão).

“A maior parte dos dados vem de regiões da Terra em que o brilho do céu nocturno é mais dominante. Isso é útil, mas significa que não podemos dizer muito sobre a mudança do brilho no céu nocturno em zonas com menos observações”, explica Kyba.

Os dados recolhidos por satélite não mostravam um cenário tão sombrio. O autor principal acredita que esta diferença entre os dados recolhidos por satélite e os dados recolhidos pelas pessoas acontece por causa do tipo de luminosidade avaliado. “Os satélites são mais sensíveis a luz que esteja direccionada para cima, para o céu. Mas é a luz emitida horizontalmente que mais contribui para o brilho do céu”, explica Christopher Kyba.

Brilho afecta animais

Pode parecer algo sem importância, mas a poluição luminosa tem impactos ambientais e pode afectar aves e outros animais que dependam da luz para orientar os seus ciclos, fazendo com que fiquem desorientados e possam até morrer.

Aliás: a poluição luminosa contribui todos os anos para a morte de milhões de aves e é preciso reduzir as luzes durante a noite para as ajudar, refere um estudo publicado pelas Nações Unidas em Outubro.

A iluminação artificial pode atrair e confundir as aves: cria alterações nos seus relógios biológicos, faz com que pensem que ainda é dia quando já é noite (o que pode fazer com que fiquem exaustas) e também pode levar a que as suas migrações comecem mais cedo do que o suposto. Muitas aves morrem ainda quando colidem com edifícios muito iluminados.

“Este brilho do céu afecta tanto os animais diurnos como nocturnos e ainda destrói uma parte importante da nossa herança cultural”, afirma Constance Walker, co-autora do estudo e investigadora do centro de investigação norte-americano NoirLab, citada em comunicado.

Foto O céu estrelado em Portugal Adriano Miranda

Este impacto abrange também os astrónomos e quem gosta de olhar para as estrelas pelo prazer de ver um céu sarapintado de luzes emanadas a milhões de anos-luz da Terra.

Na Madeira, perguntas sobre o céu

Também em Portugal, na ilha da Madeira, há um projecto sobre poluição luminosa que vai tentar envolver mais os cidadãos nesta questão: a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) anunciou na semana passada que será feito um inquérito aos madeirenses para saber de que forma são afectados por esta luminosidade.

“O objectivo não é viver às escuras, mas sim encontrar opções mais ecológicas”, explica a coordenadora Cátia Gouveia, da SPEA Madeira. Uma das soluções é optar por iluminação mais eficiente e mais “amiga da biodiversidade nocturna”. O inquérito pode ser preenchido online.

“As conclusões deste inquérito serão tidas em conta nos planos municipais de iluminação pública, permitindo que estes documentos sejam realmente ajustados à realidade de cada um dos municípios”, lê-se no comunicado da SPEA.

Assim, será possível diminuir o desperdício de energia, adaptar a iluminação pública de acordo com as necessidades e proteger em simultâneo as espécies ameaçadas, defendem. Este inquérito faz parte do projecto Life Natura@night, coordenado pela SPEA e co-financiado pela União Europeia. É também a SPEA Madeira que propõe um apagão na ilha por uma noite para proteger as aves marinhas, que ficam encadeadas e desorientadas com as luzes nocturnas.

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