apfigueiredo - 24 nov. 10:04
Visão | Mulher, Vida, Liberdade. Editorial de Mafalda Anjos
Visão | Mulher, Vida, Liberdade. Editorial de Mafalda Anjos
O que distingue estes protestos dos anteriores,no Irão, é não só a escala mas a essência do descontentamento e a forma que ele assume. Há um ponto fundamental: esta revolta é liderada pelas mulheres. E isto não é um detalhe
Ao longo da História, são imprevisíveis as centelhas que incendeiam as revoluções. Todas elas têm algo subjacente: um descontentamento provocado por uma crise – social, política ou económica –, tão profundo que leva as pessoas a confrontar-se com as autoridades e com os seus medos, exigindo mudanças na dinâmica entre o poder, as elites e o povo.
No caso do Irão, a centelha da revolução tem nome de mulher: Mahsa Amini, a jovem iraniana morta às mãos da polícia dos costumes. E um slogan: “Jin, Jiyan, Azadi” – Mulher, Vida, Liberdade. Estas são as palavras de ordem desde setembro, no Irão: o canto usado, pela primeira vez, por mulheres ativistas e combatentes curdas no final do século XX e agora adotado por mulheres e homens de várias etnias, ao desafiarem um patriarcado violento e autoritário, retirando os seus hijabs e exigindo direitos fundamentais e o fim do regime.
O Irão já foi assolado por outros confrontos no passado. Em 2009, o Movimento Verde protestou durante meses contra os resultados das eleições presidenciais fraudulentas. Dez anos depois, o país voltou a sentir uma série de tumultos, causados por uma subida do preço dos combustíveis, rapidamente reprimidos com violência. Estima-se que cerca de 1 500 pessoas foram mortas numa semana. Desta vez, as contestações, que já duram dois meses, estenderam-se a todo o país, com pelo menos 155 cidades envolvidas. Segundo os cálculos das organizações humanitárias locais, 17 mil manifestantes foram presos e mais de 400 morreram.
O que distingue estes protestos dos anteriores é não só a escala mas a essência do descontentamento e a forma que ele assume. Há um ponto fundamental: esta revolta é liderada pelas mulheres. E isto não é um detalhe.
Segundo Erica Chenoweth, uma especialista em história de resistência civil, massas e repressão política, citada pelo Politico, os movimentos em que as mulheres participam em grande número têm maior probabilidade estatística de ser bem-sucedidos e de desencadear mais períodos de democratização sustentada. É esta a conclusão de um estudo que realizou com Zoe Marks, professora de Políticas Públicas na Harvard Kennedy School. E os movimentos com grande número de participantes do sexo feminino tendem a ser percebidos como mais legítimos aos olhos dos observadores, que muitas vezes respondem ao poder simbólico de avós e alunas em protesto.
As mulheres iranianas estão nas ruas e não revelam intenção de baixar os braços. E eles estão com elas.
Há dias, no Qatar, os jogadores da seleção iraniana, liderada por Carlos Queiroz, assumiram um ato de rebeldia transmitido em direto para todo o mundo: mantiveram-se no mais profundo silêncio durante o hino nacional. E o capitão da equipa, Ehsan Hajsafi, assumiu depois, na conferência de imprensa, que o seu povo “não está feliz”.
Na semana passada, foram divulgados vídeos que mostram uma multidão a incendiar a casa-museu do ayatollah Ruhollah Khomeini, líder da revolução islâmica de 1979, que derrubou o xá e instaurou um regime repressivo. É um marco simbólico: o povo perdeu o medo dos ayatollahs. E começa a pedir a “morte ao ditador”, um grito dirigido ao atual líder supremo, Ali Khamenei, sucessor de Khomeini.
No entretanto, o Irão vai gerindo o descontentamento enquanto se aproxima da Rússia e da China, e fintando as sanções económicas impostas pela Europa e pelos Estados Unidos da América através de uma bem montada rede financeira clandestina, cheia de ramificações.
É que, se há ampla simpatia nacional com os protestos, falta, por ora, um elemento fulcral, que foi decisivo em 1979 para derrubar a monarquia: as greves. Como notava, há dias, o Financial Times, a maioria dos iranianos não está a aderir às paralisações, essencialmente inorgânicas e desorganizadas, porque teme perder o emprego. Os trabalhadores dos setores cruciais, como o petróleo, gás e petroquímica, ainda não entraram em greve. E, sem isso, muito dificilmente o regime será abalado na sua estrutura.
Tenham estas bravas mulheres e os homens que se lhes juntaram a força e a coragem para continuar na luta.
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