observador.ptObservador - 2 out. 00:08

Mariquinhas pé-de-salsa

Mariquinhas pé-de-salsa

Diz o escritor americano H.P. Lovecraft que “a emoção mais antiga e mais forte do homem é o medo, e o medo mais antigo e mais forte é o medo do desconhecido”. Em Portugal levamos esta ideia ao extremo

No mês passado fui visitar o mercado do peixe de Quarteira e enquanto aguardava a minha vez, ouvia um casal a dizer à senhora que amanhava as douradas: “Somos do Porto e vimos para aqui passar férias há 20 anos, todos os verões sem falhar”.

Fiquei perplexo com esta partilha. O que levará alguém desde 2002 a ir sempre para a mesma praia em todos estes verões?

Imagino que esse casal também deve ter contribuído para eleger o Pinto da Costa para Presidente do FCP nos últimos 40 anos, repetindo esse voto ano após ano. Nada contra, seja com essa praia ou com essa grande equipa que é o Porto.

Fiquei a matutar nisso e concluo que é um facto indesmentível: o português do Séc. XXI não gosta de arriscar.

Aquele cujos seus antepassados descobriram Madagáscar ou a região que é o hoje o Brasil, que dobraram o Cabo Bojador em 1434 ou que fizeram a primeira travessia aérea do Atlântico Sul. No seu ensaio sobre a globalização Runaway World (2002), Anthony Giddes chega a referir que a palavra “risk” teve origem em «arriscar», introduzida por exploradores portugueses e espanhóis no Séc. XV, que criaram assim um modo diferente da humanidade olhar para o futuro. Como mudámos. Mas para pior. O português procura obter segurança, comodidade e não se importa de pertencer a “tribos”.

Já reparou nos homens que usam calças beges com camisa ou casaco azul? Pensará o leitor, qual a pertinência desta (pouco) interessante constatação. Bem mais relevante do que julga. Naturalmente que não é moda. É simplesmente medo de arriscar em outra combinação de cores. Somos tribais no outfit e por vezes confundimos isso com estilo e moda. A maioria das vezes copiamos os outros porque temos aversão ao risco. Mais de 60% dos leitores deste texto, têm um carro cinzento ou preto. E mais de 30% terão um automóvel branco. Isto é moda? Não, de todo.

Na política os exemplos desta aversão à mudança são flagrantes. Marcelo foi disruptivo, arriscou sem medos numa nova abordagem. Vemos MRS nas televisões tantas vezes de gravata como de calções de praia, tem uma linguagem entendível por todos, opina sobre qualquer tema, toca e abraça, reduzindo assim o fosso entre país real e a classe política. O que conseguiu? Envolveu o país em seu redor de uma forma ímpar. “Este presidente é o melhor, é uma pessoa como nós, próxima e que gosta de afectos” – ouvimos tantas vezes. Porque simplesmente quis ser (e fazer) diferente, do que era até então a figura do Presidente da República. Pode não ser o melhor Presidente de todos mas capitalizou imenso com esta abordagem. Porque arriscou.

Repare que todos os presidentes da república pós-25 de abril foram reeleitos para 2º mandato. Se não houvesse limite de mandatos, com o nosso medo de mudanças, suspeito que estava Presidente ainda o General Eanes (sem qualquer desprimor por este senhor que me orgulha ter tido como PR).

Diz o escritor americano H.P. Lovecraft que “a emoção mais antiga e mais forte do homem é o medo, e o medo mais antigo e mais forte é o medo do desconhecido”. Levamos esta ideia ao extremo. Essa citação podia bem ser uma sinopse na nossa nação e das suas gentes. Temos de deixar de ser uns mariquinhas pé-de-salsa, que no jargão juvenil eram aqueles amigos que tinham medo de tudo, um misto entre piegas e medroso.

Senão como explicamos que em 27 anos, o P.S. governou 20? E repare: com um anterior primeiro-ministro acusado dos crimes que bem conhecemos, com as relações familiares existentes entre membros do actual governo, com o recorde do governo mais extenso da democracia, com a maior carga fiscal de sempre, os enormes impostos sobre combustíveis, os defaults do Estado sem liquidez para honrar os compromissos, as portagens caríssimas, a forma truculenta como se geriu (e se excedeu) a pandemia, onde se legislaram medidas sobre direitos, liberdades e garantias em desacordo com a CRP, o desnorteio na gestão da saúde, uma taxa de desemprego jovem acima dos 20% (UE: 13.6%. Se considerar uns 15.000 jovens que são ENI, com funções de estafetas, trabalhos precários e não registados no IEFP, a taxa de desemprego jovem está bem acima dos 30%) – polícias com esquadras fechadas, habitação a um preço inatingível para os portugueses de classe média, com o Banco Alimentar a receber cada mais pedidos de famílias e instituições para apoio alimentar, um governo que promete residências estudantis quando os actuais estudantes já não estiverem na universidade e mesmo assim recebem uma maioria absoluta?

Existirão várias explicações, mas há uma que parece ser a mais correcta: o que realmente esteve em disputa nas últimas eleições era quem mudaria menos o status quo. Isto era valorizado pelos 34% de pensionistas, 10% de funcionários públicos e 3% de pessoas que recebem subsídio de desemprego e que votaram nas últimas eleições. Que lhes importa o valor do défice, do PIB per capita ou do crescimento face à média europeia quando têm por adquirido que o impacto é quase nulo na sua condição actual? Baixo risco, menos mudanças e poucas novidades. Era o que se pretendia.

Bastou ao PS acenar com o nome “Chega” e correram a votar com receio de mudanças. E apesar de tudo, havia muitas alternativas pois até se elegeram 8 partidos para a Assembleia. Em Espanha a proliferação de partidos e de novas ideias tem sido muito mais pujante. São já 16 os partidos políticos representados no Congresso dos Deputados.

Este tema merece reflexão, o que motiva o medo de arriscar e as consequências penosas dessa atitude, para o desenvolvimento do país e para elevar o nível de vida de cada um de nós.

Temos jovens que só saem de casa dos pais aos 34 anos (dados Eurostat) quando a média europeia são 26 anos. Na Dinamarca e Suécia, os jovens “voam” cedo do ninho (21,3 anos e 19 anos respectivamente). A investigação “Os jovens em Portugal, hoje: Quem são, que hábitos têm, o que pensam e o que sentem” coordenado por Laura Sagnier e Alex Morell e apresentado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, refere que o principal motivo é a «falta de trabalho, instabilidade económica sua ou do/a companheiro/a». Mas faltou seguramente considerar algo que não é confessável ou perceptível: uma atávica aversão ao risco, que passa dos pais para filhos. A opção da maioria dos pais desta geração actual é optar pelas zonas de conforto, não arriscar. E sabe o que acontece se não houver risco? Isso, NADA…

Mal vai o país que uma maioria da população jovem ambiciona trabalhar na função pública e não prefere antes empreender, começar do zero, inovar, criar riqueza e o seu posto de trabalho. Estive há dias com uns amigos, com menos de 40 anos, que residem agora em Londres e estão a vender o seu apartamento para comprar um novo. Assalariados, trabalham tanto quanto fariam em Portugal. Perguntei a um deles quanto valia a sua casa: 1.7 milhões de libras, respondeu-me. Fiquei perplexo. Questionei-me se a maioria da população portuguesa, os que não compram um carro de cor azul ou não deixam de usar calças beges com camisa azul, se já pensaram nesta realidade, naquilo que também podemos ser se não tivéssemos medo de arriscar? De querer inovar, sentirmos desafiados pelo desconhecido. Será a baixa auto-estima que temos de nós próprios, que castra esta ambição?

Mas afinal porque será que temos medo de arriscar?

Considero que estamos muito alavancados em experiências anteriores ou de alguém nosso conhecido, que geram sentimentos negativos por algo que não correu bem. Enfatizamos de tal maneira o negativo, nas conversas, na imprensa e o preconceito instala-se e depois não conseguimos desprender. Certo é que nos esquecemos que temos inteligência e habilidade para fazer diferente e superar obstáculos. E mesmo que falhemos, aprenderemos sempre algo. Se pensarmos antes em aspectos positivos, não aumentando muito as expectativas, o sucesso obtido aos poucos irá mitigar os receios que existiam no passado. As melhores recompensas são aquelas que advém de riscos maiores. Outra interpretação, poderá ser a estrutura etária da população. Nas organizaç��es, os mais velhos pela sua experiência e conhecimento do seu funcionamento, tendem a ser mais conservadores e por isso, mais resistentes a mudanças.

E como acabar com o medo? Recorrer a psicoterapia decerto que é a melhor solução. Mas se (também aqui) não quer arriscar e descobrir como um terapeuta pode cuidar bem da sua saúde mental, diz-me a experiência pessoal que existem várias técnicas que podem melhorar este reacção: fazer várias tentativas e não desistir na 1ª vez, trabalhar a auto-estima, dar pequenos passos para fora da zona de conforto e não menos importante, refletir sobre a origem daquilo que receia. Desta forma compreenderá o porquê e assim controlará melhor o sentimento, sendo mais fácil mudar desta forma. Tenho muitas evidências na minha vida pessoal de tudo isto. Por exemplo, fui Comissário de Bordo porque tinha medo de andar de aviões ou leccionei como professor porque tinha receio de falar em público. São medos que só os mitiguei porque arrisquei.

Nós crescemos com mudanças e não fazendo sempre algo da mesma forma. Ou seja, o maior risco é não assumirmos nenhum risco. Ter esperança e fé não é uma estratégia para melhorarmos a nossa vida. Só mudaremos se nos expusermos a factos novos, se arriscarmos e desta forma, se nos educarmos a nós próprios.

Estimular o empreendedorismo em negócios não é uma forma do país crescer. É a única forma. Mas não podemos achar que todas as barbearias têm de ter um layout retro; as hamburguerias só podem ter paredes pretas e com mesas de madeira de cor crua; as bombas de gasolina têm de vender produtos de mercearia ou as imobiliárias só o são, se tiverem outdoors com fotos de consultores de braços cruzados. Não. Não temos de fazer copy-paste do que já existe só porque não queremos arriscar a ser diferentes. Temos de conseguir inverter essas tendências de copiar o que já existe.

Os jovens podem ter aqui um papel fundamental. A lenta integração dos mais novos, limita a capacidade de inovar e transformar o tecido produtivo. Acredito que estamos a tempo de mudar. A geração que fez o 25 abril está a reformar-se só agora, aqueles que conheceram de perto a opressão e a ditadura. Mudaram o país mas muito bruscamente. Não evoluímos de forma progressiva e sistematizada como por exemplo alguns países que estiveram na 2ª Guerra. Estou convicto que isso teve um enorme impacto na nossa sociedade. As alterações no país e das suas instituições e a liberdade em excesso que originou falta de limites em algumas áreas. Mais tarde “aburguesámos” com os imensos fundos que vinham da CEE. Tudo isto gerou algum laxismo, desleixo e falta de rigor. Sem muito esforço, obtivemos boas infraestruturas, modernizámos serviços, aparentámos ser um país rico. Mas era mesmo isso, aparências. Como dizem as minhas filhas, éramos (ou somos) um país “wannabe”.

E por tudo isso, temos vindo a perder confiança no país e nos seus dirigentes. Não vemos os melhores entre os seus pares em funções governativas. Em contrapartida vemos pessoas sem preparação técnica, sem grande conhecimento das pastas, a fazer uma carreira profissional como político. Isso pode ter justificado que entre 2010 e 2020, cerca de 410 mil portugueses emigraram de forma permanente. A emigração mostra que os portugueses não desistem de melhorar a sua vida. Mas mostra a sua desistência em mudar o país.

Nas crises, os mais jovens são os primeiros a ficar sem emprego, por terem vínculos laborais mais precários. Portanto os agentes da mudança são os primeiros a emigrar. Correr riscos é ter a consciência que se vai passar por uma situação sem conseguirmos controlar todas as variáveis, havendo necessidade de lidar com imprevistos com tranquilidade. Esta decisão requer coragem e é quando somos mais novos que isso mais acontece. Eventualmente a psicologia explicará a correlação nos indivíduos que gostam de arriscar a um elevado nível de auto-estima e auto-confiança. Digo-o de forma empírica é certo, baseado em evidências de pessoas que me rodeiam, com baixa aversão ao risco. O contrário, portanto, deverá ser verdade. Quem tem medo de arriscar, tem pouca confiança em si próprio e não se sente confortável em gerir situaç��es inesperadas. Importa sublinhar que é diferente ter medo de arriscar da opção de preferir não arriscar. Há quem abdique de arriscar numa situação mas fá-lo quando necessário. A prudência não é naturalmente sinónimo de baixa auto-estima.

Já há 100 anos, Almada Negreiros escrevia: “O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, portugueses, só vos faltam as qualidades”.

Para se desabrochar as melhores qualidades, o português tem de acabar com o medo do desconhecido. E para isso acontecer, pensar positivo ajudará muito a eliminar esta letargia dominante no nosso país.

27/09/2022

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