observador.ptObservador - 19 ago. 00:21

Caos e Ordem: o assalto à democracia

Caos e Ordem: o assalto à democracia

As autocracias são pouco tolerantes ao caos interno mas alimentam-se do caos externo e por isso promovem-no. As democracias são mais tolerantes ao caos interno. O que as torna mais vulneráveis.

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Até há poucos dias, 1984, para mim, era o que sempre fora: um livro de George Orwell, lido nos tempos prodigiosos da adolescência, quando o mundo se estende páginas fora. Escrito em 1949, ainda por entre os escombros deixados pela Segunda Grande Guerra, enquanto a Europa se dividia em dois blocos separados pelo que Churchill denominou «a cortina de ferro» e enquanto a União Soviética absorvia a Hungria e a Checoslováquia. Na adolescência, a única idade feita de certezas de que me lembro, sabia que a Oceania era a União Soviética de Estaline, como sabia que Goldstein, o traidor, era Trostksy. Portanto, até há poucos dias, 1984 era um livro relido no início da idade adulta, repensado em 2015 com Boualem Sansal, e cuja Oceania vira as fronteiras redefinidas. Mas há poucos dias vi o filme 1984, de Michael Radford. E doravante 1984 será também um filme.

Fiquei a pensar. Nos Estados Unidos e na União Soviética, no mundo bipolar que sucedeu à Segunda Grande Guerra. No mundo unipolar pós-queda do Muro de Berlim. Na sua decadência e nos custos e nos riscos dessa decadência; na multipolaridade de hoje; naquilo que compõe o tecido de uma ordem social internacional. Em Putin. E no caos, orgânico, ou introduzido e controlado como na guerra. Como na guerra levada à Ucrânia. Como nas sementeiras de guerras híbridas. Na guerra subsidiada pela Oceania, em simultâneo seu substrato e garante. Isto é, no caos como garante da ordem e meio promotor dos interesses de quem o gera.

Freud, que como terapeuta me interessa muito pouco, mas como filósofo me interessa muitíssimo, tem uma mundivisão enquadrada por um discurso. Nesse discurso percebemos que a ordem, que se cria por oposição ao caos e para controlo deste, é dele que se alimenta: a lei, as regras, são competências, e exigências, do Super-Ego que se alimenta das forças caóticas, porém formidáveis, do Id, do inconsciente. A guerra da Oceania é exactamente a mesma guerra de Putin. É profunda tanto quanto civilizacional. E creio que essa profundidade se manifesta pela forma como nos dividimos. Há aqueles, entre os quais me incluo, que repudiam desde o primeiro momento a acção da Rússia de Putin e a responsabilizam. Há os que atribuem à NATO e aos Estados Unidos a responsabilidade pela invasão Russa da Ucrânia.

Enquanto para os falíveis Estados democráticos o espaço internacional, a ordem social internacional num mundo multipolar, servirá, como sempre serviu, à promoção dos interesses de cada um dos Estados mas também à criação, e reconhecimento e validação de instituições pouco rígidas que garantam esse equilíbrio precário, nos Estados não democráticos, o espaço internacional é o caos onde se favorece a ordem nacional e os interesses nacionais, é o lugar da crescimento e consolidação do poder do Estado. Um poder mais rígido – rígido não é sinónimo de conservador ainda que use alguns dos seus sinais.

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