observador.ptObservador - 19 ago. 00:19

O regresso ao passado

O regresso ao passado

O progressismo, seja ele liberal ou não, é por definição não-humanista porque se orienta em função de princípios transcendentes face ao próprio Homem — à cabeça, o ideal racionalista.

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O progressismo como ideologia, na sua essência, não pode deixar de ser ‘trans’, ou mesmo ‘anti’, humano. Desde logo, porque imagina o Homem como um ser moldável pela corrente da História, logo transformável, o progressista, e nem de outra forma poderia ser, anseia e suspira pelo advento do homem novo, um ser mais evoluído, consciente, preocupado com o planeta, a sua própria pegada ecológica, particularmente obcecado pela inclusiva igualdade que todos, sem excepção, lhe merecem. Aqui reside a razão pela qual o progressismo e o novo homem são duas ideias que andam de mãos dadas: é que esse ideal humano, o tal homem novo, e como a realidade tão bem atesta, é muito diferente do homem velho, aquele que temos hoje, facilmente reconhecido pela sua avareza, ganância, excessiva competitividade e genérica maldade, características, aliás, amplamente denunciadas na hierarquia injusta e xenofóbica que o velho homem criou para explorar os pobres, oprimidos e demais desgraçados minoritários.

Ou seja, uma vez que o homem velho é o responsável pelo mundo em que vivemos — terrível, desigual, fóbico e inseguro —, a crença na mudança para um futuro mundo que transcenda essas dificuldades implica que essa mudança também se opere ao nível do criador e responsável pelo estado de coisas nesse, e quaisquer outros, mundos. Assim, por detrás do sonho do novo mundo — livre, seguro, igual, harmónico e feliz — estará, desde logo, sempre presente um novo ideal sobre aquilo que o Homem, não sendo ainda, deverá vir a ser mais tarde. Por mais voltas que sejam dadas, de forma mais ou menos consciente, a idealização de um novo mundo, por definição, implica também a idealização de um novo homem.

Estas duas ideias — que o homem pode ser transformado e que as falências e imperfeições do mundo actual são responsabilidade das deficiências e defeitos do actual homem, aquele que vive e faz hoje — podem, no entanto, não estar presentes na mente de todo o progressista, nomeadamente na sua última encarnação, a do “progressista liberal” — muito pelo contrário. Como é apanágio dos nossos tempos, com facilidade se anseia por uma coisa e o seu contrário. No entanto, a crença agora orientada para a mudança, sempre vista como boa, porque nova, mesmo quando as consequências da novidade poderão acarretar custos, sempre escondidos, que superam os benefícios, esses, sim, sempre bem anunciados, transporta-nos de imediato para um mundo futuro, logo ainda por cumprir, que se imagina infinitamente melhor do que o actual, logo também ele o corolário da evolução — hoje um termo sempre visto com uma conotação positiva — do Homem.

Ora, mas evolução não deixa de ser transformação, e assim se vê como mesmo o progressista mais moderado não pode deixar de incorporar, mesmo que de forma inconsciente, o anseio pelo propalado homem novo, mesmo que esse anseio seja em nome de uma abstracção aberta, não finalística, ou teológica. No entanto, ela lá está, no cabaz mental do progressista, junto com a crença na tecnologia salvadora e no telos universal progressista que nos faz acreditar que o tempo corre de pior para melhor, do Mal para o Bem, do sacrifício, das agruras e dos conflitos do passado, para a harmonia, a abundância e a recompensa que o futuro trará.

Depois, o progressismo, seja ele liberal ou não, é igualmente, por definição, não-humanista porque todo o seu esforço se orienta em função de princípios que se imaginam como sendo eles próprios transcendentes face ao próprio Homem — à cabeça, o ideal racionalista que crê na verdade universal revelada pela razão aos cientistas que vêm hoje em dia, pela TV, ordenar o caos do mundo humano, incluindo o moral, de acordo com os últimos estudos e comprovações científicas.

Aqui, o progressismo também tem muita dificuldade em separar-se do racionalismo, ou do cientismo — e assim teria que ser uma vez que todas estas ideias caminham lado a lado, pois que são parentes próximos: o racionalismo pariu as outras duas, sendo as irmãs os pilares do optimismo que anima o homem contemporâneo na sua ânsia de transformar a realidade rumo a um fantástico mundo novo.

Mas também aqui o trans-humanismo é condição sine qua non para o progressismo uma vez que todo o racionalismo mais não é do que a crença que a condição humana primordial pode ser transcendida pela razão. Assim, tal como para o racionalista existe uma ordem racional no mundo que — objectiva, perpétua, universal — revela ao Homem, através da ciência, a verdade sobre o Universo, a vida e a existência, também para o progressista essa mesma ordem, e essa mesma revelação, garantem ao Homem o sucesso nos seus projectos rumo ao futuro. Ou seja, o progressista é optimista porque é racionalista e “cientista”, mesmo que não saiba que o é, do mesmo modo como o racionalista é igualmente “cientista”, optimista e… progressista.

Ao mesmo tempo, a revolução tecnológica confirma as crenças e os dogmas quer de uns quer de outros. Desde o telemóvel que, sem que se perceba como — ou seja, de forma mágica e inexplicável, para além da lengalenga que é “graças à ciência” — traz à palma da mão o mundo inteiro, passando pelos meios de transporte que nos fazem literalmente voar como os pássaros, ou as promessas de curas imediatas e milagrosas, tudo se conjuga para demonstrar que foi a razão e a ciência — sendo hoje a segunda a forma como evocamos a primeira — que nos ofereceu a chave do Universo, uma chave que a seu tempo resolverá o dilema humano e as agruras da condição existencial humana.

Mas, mais uma vez, é também de transcendência que falamos aqui. Quer a do Homem que transcende a sua condição, logo a si próprio, quer a do acesso a um conhecimento que até há pouco — um pouco antes de 1789 — estava em larga medida interdito à Humanidade, interdição a qual agora se transcende rumo ao admirável mundo, e homem, novos. Não admira, portanto, que na húbris motivada pelo deslumbre para com o brilho dos novos brinquedos tecnológicos, vivendo os resultados práticos da transcendência (tecnológica) face ao mundo, se imagine hoje em dia que tudo possa ser tecnológica e cientificamente resolvido, desde os conflitos do mundo até ao próprio Homem — seja pelas drogas salvadoras, as novas técnicas nano-robóticas, a ciber-genética ou os modelos teóricos infalíveis dos supercomputadores.

Ao mesmo tempo, crescente e inexoravelmente, o meta-mundo digital vai engolindo as mentes dos mais novos. Aí, livres de limites físicos, já no reino da imaginação pura, a transcendência face à realidade humana acelera rumo ao tal admirável futuro, uma construção que a cada dia que passa se vislumbra mais através de óculos virtuais do que na realidade do quotidiano — cada vez menos abundante, mais conflituoso, menos virtuoso.

Voltando ao início, veja-se a coisa por um lado ou veja-se pelo outro, o trans-humanismo, um eufemismo optimista para anti-humanismo (o actual), é uma condição essencial da crença progressista. É transformando o homem velho que se transcende a condição humana que nos “oprime” a todos. Ou seja, a solução para o conflito que o progressista vê no mundo passa sempre por transcender esse mundo, nunca aceitá-lo tal qual ele é. Transcender, superar, vencer, o mundo histórico das trevas primordiais rumo ao éter, seja ele digital ou cósmico, armados com a força que a crença no admirável mundo novo oferece, eis a suprema e mais moderna forma de negar a realidade do mundo humano.

Levantados do mundo animal, criados de poeira cósmica, os progressistas imaginam-se agora verdadeiros deuses modernos que pairam sobre a realidade cruel do mundo das bestas, das quais, aliás, dada a sua superioridade face à tragédia da História, já nem se precisam alimentar, isto enquanto vislumbram um futuro de cilício, tungsténio e carbono, as bases materiais que sustentarão o upload rumo à imortalidade digital, não-binária, trans-humana, perpetuamente consagrada no safe space do ciber-espaço alimentado a moinhos de vento.

Mas do outro lado do sonho trans-humanista está a dura realidade. Nem o Homem historicamente se comprovou como sendo assim tão moldável, nem a razão alguma vez mostrou ser mais do que um formalismo lógico, uma ferramenta útil, mas vazia de soluções, ou decisões, essas sim o verdadeiro fardo que a liberdade humana implica — liberdade equivale à responsabilidade de decidir. E aqui reside a falsa promessa progressista contemporânea: a de que o homem poderá guardar a sua liberdade “libertando-se” do fardo da responsabilidade da decisão subjectiva. Ou seja, o progressista acredita que, a seu tempo, através da tecnologia que traz a abundância, haverá uma solução objectiva, científica, logo transcendente, trans-humana portanto, para os conflitos da vida — e que, em a encontrando, sendo essa solução racional, todos concordaremos que ela é a verdadeira solução, logo boa, devendo, portanto, perante as evidências, ser por todos aceite como tal.

No entanto, esses sonhos progressistas, ao contrário da roupagem, são tudo menos ideias novas, muito pelo contrário implicam um regresso ao passado já que foram a base de todos os totalitarismos do século XX. Onde Rousseau vislumbrou a “vontade geral” que guiaria os bons selvagens fruto à feliz harmonia, tal como onde Kant imaginou uma “razão pura” que traria a certeza infalível da racionalidade para refrear as “inclinações” humanas rumo à “paz perpétua”, vislumbram agora os progressistas-pseudo-cientistas a máquina, o computador e o algoritmo capazes de decidir e julgar por nós, eliminando-se dessa forma o erro, logo os conflitos, libertando-nos de nós próprios — mas essa “libertação” não é mais do que a aniquilação daquilo que faz de nós humanos, ou seja, da sapiência capaz de escolher em liberdade.

Na realidade, essa “libertação” apenas ocorre a expensas da destruição daquilo que somos, sendo precisamente aqui que a ilusão da transcendência face àquilo que é, ou que somos, dá lugar à constatação de que o combustível do anseio pelo trans-humanismo não passa de uma negação desse mesmo humanismo. Daí que em nome dos mais altos princípios se cometam sempre os mais graves crimes — e que dos mais salvíficos projectos políticos se levem a cabo as maiores mortandades. Como sempre no passado, o filme é o mesmo: anunciando a abundância trazem os salvadores a pobreza, prometendo a harmonia e a paz universal semeiam a guerra, em nome da salvação, destroem o mundo.

Sejam os filósofos na República de Platão, sejam os computadores espaciais na Odisseia de Kubrick, sempre que os humanos delegam a solução dos seus conflitos em outros além de si próprios, acabam esmagados pelo burocrata — seja ele consciente ou não —então encarregado da decisão. Infelizmente, hoje, mesmo os liberais, aqueles que mais deveriam proteger e valorizar a liberdade, parecem não compreender que o conflito humano que tanto querem resolver advém do pluralismo que caracteriza o pensamento, a vontade e a vida dos homens. E que o verdadeiro progresso não está em negar esse pluralismo em busca de uma harmonia tão quimérica quanto estulta, mas muito mais em aceitá-lo como a fonte da riqueza, diversidade e criatividade humanas.

No entanto, hoje, o progressismo ideológico infiltrou a psique generalizada da população, bem como a dos partidos políticos, os media, os big tech e, fruto do ESG, a grande maioria das empresas cotadas em bolsa, tornando-se regra, ou narrativa, dogmaticamente inquestionável — agora, até mesmo os liberais desfilam em conjunto com os amanhãs que cantam, são coniventes com a formatação dos indivíduos face ao ensino estatal e permitem-se a imaginar os seus princípios como os únicos que são racional e cientificamente correctos.

A utopia do eterno progresso, com a negação humanista que lhe está associada, representa hoje um perigo imenso, numa espécie de desvario suicida que tomou conta da sociedade. Desde logo, pela forma como, deslumbrados pelo seu próprio umbigo, para gáudio da multidão, se deitam hoje borda fora as instituições, os princípios e os valores que, fruto de séculos de maturação, criaram este nosso mundo contemporâneo que os nosso pais e avós nos deixaram — um mundo tão abundante, rico, pacífico e seguro que dificilmente se compreende outra razão além da loucura para a necessidade ingrata de tantos em repudiá-lo em nome de uma mão cheia de sonhos que, na sua essência, acarretam invariavelmente a negação da nossa própria humanidade.

Mas também aqui não há novidade. Afinal, a ingratidão será sempre o combustível dos ignorantes que, tudo tendo, tudo deitam a perder.

Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.

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