ssantos - 22 jun. 08:30
Visão | Uma pizza chamada Bíblia
Visão | Uma pizza chamada Bíblia
A Bíblia sempre apresentou propriedades fantásticas como a elasticidade. Esticam-na até onde querem para justificar o impensável. Outras vezes há quem a corte em fatias como uma pizza
Existe uma profunda iliteracia bíblica geral, que se torna ainda mais grave no campo religioso da fé cristã. Pelo menos desde a tradição católica de considerar legítima apenas a Vulgata Latina, desconsiderando a tradução dos textos bíblicos para o vernáculo, como se os textos originais tivessem sido escritos latim e não em hebraico, grego e pequenas partes em aramaico. Venceu a ordem litúrgica sobre a inteligibilidade e compreensão. Daí resultou que se tenham mantido os fiéis afastados das Escrituras durante demasiado tempo.
Lutero entendeu que a renovação espiritual da Igreja passava por dar a conhecer a Bíblia aos fiéis em geral, e por isso a sua forte ênfase reformadora na tradução dos textos e na educação, com base no princípio de Jesus: “Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:31,32). Portanto, a Palavra de Deus revela a verdade sobre Ele e é libertadora.
Para que o Império Britânico pudesse manter grandes campos de algodão nas Caraíbas, nos inícios do séc. XIX, beneficiava do tráfico de escravos e para isso trazia de África milhares de pessoas. Depois seguia-se a conversão religiosa compulsiva dos escravos, o que constituía uma forma eficaz de manipulação, tendo os missionários britânicos chegado ao ponto de os tentar controlar mentalmente através duma Bíblia falsificada.
O Museu da Bíblia, em Washington DC, exibe desde 2017 um curioso exemplar das Escrituras, datado de 1808 e editado especialmente para os escravos (“negro slaves”). Trata-se de um empréstimo da Universidade de Fisk em Nashville, Tennessee, que diz terem sobrevivido apenas três exemplares desta edição, sendo esta a única cópia conhecida nos Estados Unidos.
De facto não é uma Bíblia mas uma selecção de textos bíblico de onde foram extraídos convenientemente todos os versículos que faziam referência à escravatura. A saga do Êxodo, por exemplo, foi inteiramente suprimida e não se encontra qualquer referência à escravidão dos hebreus no Egipto e muito menos ao seu clamor por libertação ao Deus dos seus antepassados ou ao surpreendente processo de libertação. Um dos textos paulinos mais fundamentais do pensamento cristão também foi cortado: “Não há judeu ou grego; não há escravo ou livre; não há homem nem mulher; porque todos vocês são um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28).
Esta selecção deve ter dado um trabalho terrível a organizar pois obrigou a excluir dela livros inteiros como a Carta de Paulo a Filemon, onde o apóstolo dos gentios intercede em favor dum escravo fugitivo – Onésimo – que veio a abraçar a fé em Roma, na casa de Paulo, que por uma feliz coincidência era amigo do seu dono em Filipos, ou a voz dos profetas do Antigo Testamento contra os opressores do trabalhador e do pobre. Ou a defesa que a lei de Moisés fazia do estrangeiro.
Os editores não se limitaram a mudar uma palavra por outra. Pelo contrário, a estrutura do livro sagrado foi completamente alterada, com o corte de cerca de noventa por cento do Antigo Testamento e metade do novo. Dos 1189 capítulos da Bíblia protestante restaram apenas 232…
Foram preservados apenas os textos bíblicos que falam de obediência, submissão, aceitação e conformismo, num claro propósito de arrefecer qualquer tipo de revolta dos escravos agora convertidos ao cristianismo, e por vezes à força, de modo a manter intacto o ignóbil sistema esclavagista sobre o qual assentava a economia da época.
Ora, este acto de truncar as Escrituras com fins políticos revela má-fé e a instrumentalização da religião por razões inconfessáveis. Por isso um estudioso do cristianismo negro americano concluiu: “Esta relíquia obriga-nos a lidar com uma questão atemporal: na interpretação bíblica o resultado final é sempre a libertação ou a dominação”.
Para alguns a Bíblia sempre apresentou propriedades fantásticas como a elasticidade. Esticam-na até onde querem para justificar o impensável, de acordo com as suas ideias, fantasias ou intenções. Mas outras vezes há quem se limite a cortá-la em fatias como se fosse uma pizza demasiado recheada.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.