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″Este concerto no La Scala foi dedicado à paz e aos valores democráticos″

″Este concerto no La Scala foi dedicado à paz e aos valores democráticos″

O maestro português brilhou em Milão, acompanhado pela Orquestra da RAI e com o violinista Vadim Repin como solista para composições da russa Gubaidulina e do estónio Pärt. O concerto dirigido por Pedro Amaral fechou com a 15.ª Sinfonia de Shostakovich, génio soviético que nem a perseguição de Estaline impediu de deixar um legado universal. Entrevista foi feita uma hora antes do concerto, mas a última pergunta foi depois da chuva de aplausos do público italiano.

Tem 50 anos e duas décadas de carreira como maestro. Estrear-se no La Scala, aqui em Milão, é especial?
É um teatro de referência no panorama mundial. E, para mim, é uma grande honra. À porta do meu camarim está um daguerreótipo de Giuseppe Verdi a passear em frente a La Scala, quem sabe se no intervalo de um ensaio. É uma casa cheia de história. Sinto-me feliz e grato pela confiança que depositam no meu trabalho ao convidarem-me para dirigir aqui.

Há teatros que marcam muito. La Scala é um. O Bolshoi, em Moscovo, é também a este nível, para si?
Não, nem o Bolshoi nem o Mariinsky, em São Petersburgo. São dois grandíssimos teatros, sem nenhuma dúvida. Aqui tocamos num aspeto interessante, até para a visão geopolítica da atualidade. A Rússia, pelo menos desde Pedro, o Grande, oscilou regulamente entre virar-se para si mesma ou virar-se para a Europa. Pedro, o Grande olha para o Ocidente e parte por esta Europa fora, anónimo, no meio de uma "grande embaixada" que o leva a Amesterdão, a Viena, a Londres, visita a Universidade de Oxford, conhece Newton... É uma viagem de observação. Aprende uma série de ofícios e procura levar a Europa ao seu país, tomando-a como modelo para a modernização da Rússia. Depois de Pedro I, o país volta a fechar-se sobre si próprio e estes dois teatros são, de algum modo, um símbolo dessa Rússia hesitante entre abrir-se ao exterior ou fechar-se sobre si mesma. Muitos grandes intérpretes vão atuar nesses teatros que, no entanto, nunca adquiriram a dimensão internacional de La Scala, da Ópera de Viena ou do MET de Nova Iorque.

Fala-se da cultura russa e muitas vezes tenta-se perceber qual é o seu destino e se a geografia pesa: se quer ser mais asiática ou mais europeia. Por exemplo, para este concerto, trouxe dois russos e um estónio, todos eles, o morto e os dois vivos, com passado de viver na União Soviética. É coincidência, essa escolha, tendo em conta a atual guerra na Ucrânia?
Os concertos são programados com muita antecedência e quando me convidaram, quando escolhemos este programa, estávamos longe de imaginar que íamos ter uma guerra na Europa. Mas, de facto, estamos em guerra e, na atual situação, é evidente que o concerto ganhou uma dimensão simbólica, imprevista.

O facto de o solista, o violinista Vadim Repin, ser um belga de origem russa é também um elemento que se acrescenta a este momento geopolítico, mas, ao mesmo tempo, em muitos aspetos, ele é o músico certo para interpretar algumas destas composições.
Não há dúvida! Vadim é russo e, mais do que russo, é siberiano: vem dos confins orientais daquele grande país. Estudou na Europa Central e por isso tem essa nacionalidade e vive atualmente entre Viena e Moscovo. Duas das obras que vamos interpretar foram escritas para ele e, portanto, tendo sido o interlocutor direto dos dois compositores, é, sem dúvida, um intérprete privilegiado.

Estamos a falar de obras de Arvo Pärt e de Sofia Gubaidulina?
De Gubaidulina e Pärt, pela ordem, sendo que a obra de Pärt é, no fundo, uma versão para violino e orquestra de uma peça anteriormente escrita.

O concerto termina com Dmitri Shostakovich. O que é que representa? Falamos de alguém que, ao contrário de Pärt e Gubaidulina, não é contemporâneo, e que sendo perseguido por Estaline não deixou de ser um grande compositor soviético.
Shostakovich viveu a sua vida numa montanha-russa de emoções. Ainda muito jovem, conheceu um sucesso fulgurante; tinha uma musicalidade extraordinária e componha para tudo - teatro, cinema, sala de concerto, orquestra de jazz, ópera naturalmente... Em meados dos anos 30, no entanto, com 28 anos de idade, uma das suas óperas, Lady Macbeth de Mtsensk, mereceu a ira de Estaline que escreveu, julga-se que pela própria pena, um artigo no Pravda que destruiu completamente Shostakovich do ponto de vista humano e profissional. Considerava-se que ele estava a incorrer no pecado do "formalismo" e que, portanto, era contrarrevolucionário. Shostakovich não imaginava tal coisa porque, para ele, praticar uma estética moderna e livre era, justamente, a sua forma de contribuir para a revolução, na qual ele era um profundo crente.

Um compositor assim chegava ao Ocidente?
Chegava, não há dúvida nenhuma. Logo em 1935 Lady Macbeth mereceu uma crítica, aliás contundente, num jornal nova-iorquino. O Ocidente rapidamente se apercebeu de que estava ali um compositor excecional. A partitura da Sétima Sinfonia, que descreve o cerco de Leningrado pelos nazis, na Segunda Guerra Mundial, saiu clandestinamente da Rússia, em microfilme, viajando por Teerão e Cairo até chegar a Londres e Nova Iorque, em junho e julho de 1942, onde sir Henry Wood e Arturo Toscanini dirigiram, respetivamente, as estreias europeia e norte-americana, três, quatro meses depois da estreia mundial, e quando a obra já era transmitida por toda a União Soviética como símbolo da resistência ao invasor.

Durante a Guerra Fria, com o choque ideológico entre os Estados Unidos e a União Soviética, manteve-se a popularidade de Shostakovich e de outros compositores do lado de lá da Cortina de Ferro?
A censura a um determinado país, aos seus autores e intérpretes, não é de hoje. Durante a Segunda Guerra Mundial também existiu em relação aos germânicos e, durante a Guerra Fria, de ambos os lados da Cortina de Ferro. Mas em relação aos russos havia um aspeto particular: o Ocidente via-os, em parte, como vítimas do regime...

...e, muitas vezes, como dissidentes...
...alguns foram mesmo dissidentes, sim, outros ficaram, com maior ou menor convicção: Prokofiev e Shostakovitch, entre outros. E muitos sobreviveram a Estaline e ao próprio regime - Gubaidulina, por exemplo, que chegou a ser colocada numa lista negra pela União dos Compositores da União Soviética, nos tempos de Brezhnev. A 15.ª Sinfonia de Shostakovich, que vou dirigir, foi escrita em 1971, o que mostra a longevidade de Shostakovich que, 40 anos antes, era já um dos grandes compositores do seu tempo.

É uma sinfonia muito pessoal...
É uma sinfonia testamentária que, de algum modo, percorre a própria vida do compositor, quase num balanço autobiográfico. A obra tem quatro andamentos e, no primeiro, vemos o jovem Shostakovich, com a sua rítmica eletrizante, o seu fraseado imparável, o seu humor, aquela mistura ímpar de erudição e música de rua, ou de circo, ilustrada pela famosa citação de Guilherme Tell, de Rossini. A partir do segundo andamento, entramos em zonas mais sombrias e, no último, temos duas citações importantes e eloquentes de Wagner: o "motivo da Dor", de Tristão e Isolda, e o "motivo do Destino", de Crepúsculo dos Deuses. Mas há também duas autocitações: a do "tema da Invasão", da Sinfonia Leningrado, que ouvido hoje, na atual situação geopolítica, tem um eco histórico incontornável; e uma vaga citação da Quarta Sinfonia, com os instrumentos de percussão descrevendo uma espécie de mecanismo de relógio, assinalando o inelutável passar do tempo. Mas a grande citação é, do meu ponto de vista, a de Crepúsculo dos Deuses, com o desabar de toda a cosmogonia que, de alguma forma, oferece uma antevisão simbólica, a 18 anos de distância, da queda do muro de Berlim.

Um homem que compõe esta obra é um génio?
Naturalmente! Mas eu devo dizer que cheguei tarde à obra do Shostakovich. Para nós, na Europa Ocidental, a música passou muito pela geração de Darmstadt: Boulez, Stockhausen, Luciano Berio, Luigi Nono... compositores muito jovens, no pós-Segunda Guerra Mundial, que herdaram uma Europa devastada e que viram, no Velho Continente em ruínas, a oportunidade de uma reconstrução plena e cartesiana do edifício estético. Na Rússia não se passou nada de semelhante, pelo contrário: há uma continuidade de Tchaikovsky e Rimsky-Korsakoff a Stravinsky, e de Stravinsky a Shostakovich.

Descobriu tarde, mas passou a fazer parte das suas preferências?
Repare que praticar esta linguagem musical, esta "tonalidade alargada", até aos anos 70, vai completamente em contraciclo com o que se passava do lado de cá da Cortina de Ferro, onde a tonalidade tinha começado a ser abandonada em 1908 e onde, desde os anos 50 se praticava a modernidade estruturalista mais radical. Tive dificuldade em chegar a Shostakovich porque estava completamente fora da nossa genealogia histórica. Hoje, a esta distância, a três quartos de século do fim da Segunda Guerra Mundial, considero-o um compositor extraordinário; tenho uma admiração profunda pela vida deste homem e pela obra que nos deixou.

Dos outros dois compositores, ela, hoje com 90 anos, tem uma história pessoal curiosa, sendo uma tártara que se converteu ao cristianismo ortodoxo. Ele, de 86 anos, é um estónio, e ambos tiveram um passado também de dificuldades durante a era Soviética. Podemos enraizar Gubaidulina e Pärt nesta tradição musical que vem daquela parte da Europa?
Sem dúvida. A obra de Sofia Gubaidulina termina com um belíssimo e prolongado acorde de Ré menor, da mesma forma que a Sinfonia de Shostakovich termina com um longo acorde de Lá maior, enquanto a de Pärt é, toda ela, atravessada pela tonalidade de Mi menor - coisas impensáveis em obras estruturalistas da modernidade centro-europeia, que se afastou radicalmente da morfologia tonal. A linguagem musical deles herda, em parte, a de Shostakovich, numa continuidade muito percetível, lá está: Glinka, Rimsky-Korsakoff, Stravinsky, Shostakovich, Gubaidulina - o elo histórico é evidente. E há a própria relação pessoal: no exame final de Sofia Gubaidulina, no Conservatório de Moscovo, Shostakovich estava no júri e é famosa a forma como a encorajou a seguir o seu caminho pessoal, ao arrepio do cânone soviético, num regime sempre muito atento à linguagem estética dos seus compositores.

O que torna Gubaidulina única?
Eu diria o encontro entre a sua linguagem pessoal e a sua devoção religiosa. Há uma grande espiritualidade que atravessa a música russa, manifesta nas obras de Rimsky, Stravinsky, Rachmaninoff e, sobretudo, Scriabin. Em Shostakovich, compositor modernista que cresce nos anos da revolução bolchevique, a espiritualidade não tem uma vocação religiosa, embora haja nele um apelo constante à transcendência. Gubaidulina e Pärt, mais tardios, herdam esta espiritualidade, mas emersa num cariz místico. Desde logo, a obra de Gubaidulina parte de um diálogo - "Ich und Du" - que pode ser lido como tendo lugar entre o artista e o criador. Mais descritiva, a obra de Pärt intitula-se La Sindone, que é a palavra italiana para Sudário: o Santo Sudário de Turim, a mortalha de linho que se diz ter coberto o corpo de Cristo após a crucifixão. A obra tem três partes, que descrevem, sucessivamente, a Crucifixão, a Deposição e a Ressurreição. Na segunda parte, muito lenta, ele tem esta ideia de as pessoas olharem para o corpo inerte de Cristo, tentarem aproximar-se, a medo, tentarem tocar. Pärt pensa sempre mais por imagens que por estruturas musicais. A música serve uma ideia, uma visão espiritual. A sua visão (quase apetece dizer: a sua incarnação musical) da Ressurreição, por exemplo, é impressionante. A linguagem é extremamente simples; o efeito é fortíssimo.

Este concerto, como disse, estava programado antes da invasão da Ucrânia, mas, entretanto, houve cancelamentos de concertos com músicos russos ou obras de compositores russos. Houve pressão para que acontecesse com este concerto?
Não, não houve qualquer pressão. Pelo contrário: com o eclodir da guerra a administração decidiu dedicar esta edição do Festival de Milão aos "Suoni d"ombra", em harmonia com os tempos que vivemos. Pela sua parte, Vadim Repin ofereceu o concerto e dedicou-o "à paz e aos valores democráticos", o que, tratando-se de um cidadão russo, me parece de grande coragem. A fórmula que utilizou, à qual me associo inteiramente, é tão nobre e humanista que dificilmente haverá quem não a subscreva. Mas eu queria sublinhar um outro lado: para mim este concerto é um "statement": num momento em que assistimos a atos de censura da cultura russa, incluindo monumentos universais como Dostoiévski e Tchaikovsky, este concerto é uma afirmação da arte num plano irredutível ao das decisões políticas circunstanciais. A inequívoca condenação da guerra e do agressor não pode jamais levar a música e a literatura numa avalanche cega que nos amputa a todos daquela que é parte da cultura universal. É deixar-nos a todos mais pobres.

Para um maestro, estar no La Scala, e presumindo que a maior parte do público são italianos, apaixonados por música clássica, muitos desde crianças, como foi esta estreia?
Foi realmente uma noite especial. Correu tudo muito bem - há concertos assim, em que os astros parecem alinhados. O solista esteve em grande forma, com um som, uma energia e uma intensidade extraordinárias. Não é frequente tocar-se assim a música dos nossos dias: muitos instrumentistas e maestros abordam a contemporaneidade de uma forma fria, meramente técnica, sem o cuidado da frase e sem o cuidado do som. Tocar Gubaidulina e Pärt num violino Amati construído na Cremona de finais do século XVII traz imediatamente uma dimensão tímbrica, uma cor e uma sonoridade de grande riqueza. Creio que conseguimos alcançar uma verdadeira "interpretação" da obra, uma leitura, uma visão - e não simples "execução". O rigor é imprescindível, mas não pode ser um fim em si mesmo, sob pena de ficarmos presos à simples materialidade, quando, pelo contrário, a arte deve abrir espaços de emoção e transcendência. Reparou no silêncio na parte de central de La Sindone, quando o compositor descreve a aproximação ao corpo de Cristo? O público parecia reter a própria respiração. A orquestra esteve magnífica e, na segunda parte, na Sinfonia de Shostakovitch, já sem o solista, pôde expandir livremente a sua ampla sonoridade. Sabe, a relação entre o maestro e a orquestra é como uma relação entre duas pessoas: pode haver empatia ou frieza, "química", como se diz, ou distância. Neste caso houve grande empatia com a Orquestra da RAI. Em palco, arrisquei mesmo conduzir a interpretação por caminhos um pouco inesperados, ao nível da dinâmica e do tempo, e a resposta da orquestra foi sempre imediata e cúmplice. Estivemos verdadeiramente de mãos dadas e creio que conseguimos dar uma imagem integral da sinfonia em todas as suas dimensões: da jovialidade inquieta e rítmica do primeiro Allegretto à apoteose sinfónica do derradeiro andamento, passando pelos corais mais sombrios, pelos solos mais despojados, mas também pela música de circo e pelo sarcasmo contido do Scherzo. A reação do público foi visível e todos, a orquestra, o solista e eu próprio, nos sentimos felizes e realizados.

leonidio.ferreira@dn.pt

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