ionline.sapo.ptHenrique Neto - 20 mai. 09:41

A endogamia do poder

A endogamia do poder

É particularmente chocante a facilidade com que as afirmações e as políticas sustentadas pelo poder passam sem o mínimo de escrutínio de base científica, ou são sustentadas pela comunicação social sem qualquer espécie de análise crítica.

Não haverá provavelmente na Europa um caso tão evidente e tão duradouro de endogamia governativa como o português. Não haverá outro caso onde os interesses da tribo no poder funcionem de forma tão eficiente e com uma tal unidade de pensamento. Ou, se preferirmos, onde tanta gente segue o pensamento dos líderes sem uma ideia ou pensamento próprios. 

Admito que durante os seis anos de governos de António Guterres essa endogamia não terá sido tão evidente, porque haveria então ainda algumas pessoas e ideias diversas no Partido Socialista, porventura devido à personalidade menos autoritária do então primeiro- ministro. Foi com José Sócrates que essa característica da governação se tornou mais clara e agora com António Costa que essa unidade cultural da tribo se aprofundou, ao ponto de se tornar uma ditadura do pensamento único. Não haverá em Portugal uma verdadeira ditadura de um só homem, mas uma ditadura de um colectivo de interesses, que usa a passividade, por vezes a ignorância, da sociedade no seu conjunto, para ganhar eleições.

Haverá certamente outras razões para este fenómeno português, talvez que o simples azar, talvez o resultado de diversos acidentes de percurso, não sei, não serei a pessoa mais indicada para o julgar, mas sei que não é normal que depois de tantos erros, de tanta corrupção do poder e de tantos maus resultados económicos, sociais e de organização do Estado, o PS se mantenha no poder com maioria absoluta. 

Não acredito que seja a tão falada fraqueza, ou a diversidade das oposições que permita esse fenómeno, penso antes que, pelo menos, a oposição de direita foi submergida por ele. Talvez que o ponto alto dessa evolução tenha sido a vitória do PS sobre o PSD quando conseguiu fazer esquecer o desastre da governação de José Sócrates e culpar o governo de então e a troika pelas dificuldades económicas e financeiras herdadas. Talvez que a determinação messiânica de Pedro Passos Coelho tenha ajudado, não sei, espero apenas que os especialistas possam clarificar esta fase da nossa história contemporânea. Mas sei que as condições que descrevi são trágicas para o desenvolvimento económico e social do país e que esta poderosa endogamia está para durar. 

Referi a passividade de uma grande parte da sociedade portuguesa, a qual é por demais evidente, o que ajuda a explicar o fenómeno. Nomeadamente, a passividade de sectores da sociedade do conhecimento e das suas instituições perante os erros, as indecisões e os interesses em jogo entre o poder político e uma parte do poder económico. O silêncio relativamente a más decisões das políticas – económica, energética, da educação, da mobilidade das pessoas e das mercadorias, como da Justiça – que são questões que, digamos, podem ser analisadas através do conhecimento especializado, são temas centrais na referida passividade. Porventura, porque a endogamia do poder é extensível a estes importantes sectores da sociedade portuguesa. 

Neste contexto, é particularmente chocante a facilidade com que as afirmações e as políticas sustentadas pelo poder passam sem o mínimo de escrutínio de base científica, ou são sustentadas pela comunicação social sem qualquer espécie de análise crítica. Chegámos a um ponto em que qualquer afirmação do poder, por mais insustentável que seja, entre no campo das aquisições factuais da sociedade. Dou alguns exemplos:

Ferrovia – Não existe uma política ou um plano ferroviário, mas existem afirmações avulsas do poder político que contradizem as decisões da União Europeia, a importante realidade espanhola, os conhecimentos tecnológico e económico adquiridos e a opinião dos especialistas independentes, sem que nada aconteça. A preferência pela bitola ibérica, com base numa suposta defesa relativamente à concorrência internacional, poderá constituir uma opção demencial e insustentável, mas é a que está no terreno prático dos investimentos públicos.

Energia – A opção pelas energias renováveis sem critérios do tempo tecnológico, de dimensão, de custo e das alternativas em cada fase do processo, tornaram a questão da energia num tema de ordem religiosa, que floresce sem uma intervenção séria de base científica e é apenas contrariada por um pequeno conjunto de especialistas que fizeram as suas carreiras no sector, mas que poucos ouvem.

Saúde – Trata-se também de uma questão de fé no Serviço Nacional de Saúde e na superioridade da gestão pública relativamente à gestão privada. Entretanto, cada vez mais portugueses procuram as instituições privadas, cada vez mais empresas privadas aumentam a sua oferta com novos hospitais e clínicas, cada vez mais profissionais preferem trabalhar no sistema privado, sem que as críticas desses profissionais e das suas instituições tenham qualquer efeito, ou sem que as universidades do sector da saúde e da economia estudem, com objectividade científica, o que se passa. 

Justiça – Neste caso todo mundo está de acordo que a justiça portuguesa é lenta, que as leis são demasiadas e confusas, que a independência do sistema relativamente ao poder político é questionável, pela via das nomeações e da dependência financeira, mas ano após ano e década após década, nada acontece. Só restará ir à bruxa.

Economia – Ao fim de mais de vinte anos de estagnação económica, de Portugal estar a se ultrapassado por todos os países da segunda divisão da economia europeia – os da primeira divisão são de outro campeonato – as instituições que estudam a economia ainda não sabem que a economia portuguesa é fortemente dual e que essa dualidade, com a dimensão que atingiu entre nós, é mortal. Todavia, ainda se debate se o mercado interno e o turismo são a solução. Portugal é o único país da União Europeia que exporta apenas cerca de 40% do PIB, quando todos os países da nossa dimensão exportam entre 60% e os 105% da Irlanda, mas sobre isso, não passa nada. 

Educação – O primeiro-ministro concedeu recentemente que a razão dos países da antiga cortina de ferro nos estarem a ultrapassar se deve ao seu melhor nível educativo. Fez-se um ruidoso silêncio, nenhum centro de saber ou meio de comunicação se pronunciou sobre as razões porque meio século depois do 25 de Abril e da superioridade dos regimes democráticos, o atraso se mantém.

Setúbal – A fechar um tema menor: António Costa disse que recebe, a meias com o Presidente da República, relatórios dos Serviços de Segurança que são secretos, mas também disse que Rui Rio, tal como ele Primeiro Ministro, não sabem de nada do que aconteceu em Setúbal. No caso do Presidente da República e do primeiro-ministro é porque não leem os relatórios ou porque os serviços são incompetentes e nada viram? O mistério persiste e também persiste o desconhecimento sobre a razão porque Portugal é um País pobre e atrasado.

Empresário
Subscritor do manifesto Por Uma Democracia de Qualidade

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