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A internet do valor

A internet do valor

É fácil de esquecer que passaram menos de 50 anos desde que dois computadores trocaram dados pela primeira vez. Foi em 1969, o mesmo ano em que o homem chegou à Lua e os Archies lançaram o seu grande hit ″Sugar Sugar″.

É fácil de esquecer que passaram menos de 50 anos desde que dois computadores trocaram dados pela primeira vez. Foi em 1969, o mesmo ano em que o homem chegou à Lua e os Archies lançaram o seu grande hit "Sugar Sugar".

Desde esse momento, é inegável que o impacto desta tecnologia tem sido verdadeiramente ubíquo, moldando cada vez mais áreas da nossa vida. Desde a cultura popular à economia, da religião ao lazer, à forma como nos relacionamos com os outros, como formamos as nossas opiniões, consumimos conteúdo e aprendemos. Se pensarmos que a capacidade de comunicação é o principal fator diferenciador dos seres humanos, talvez não seja de admirar que uma tecnologia que permite a troca de informação instantânea entre diferentes partes se torne uma pedra basilar da nossa construção social em apenas meras décadas.

A evolução da web

Usualmente e de forma genérica, as tentativas de escrever a história da internet dividem-se em duas grandes fases: antes e depois da invenção da web, em 1989, pela mão de Tim Berners Lee. Em grande medida, é mais ou menos consensual que a implementação da web é o momento em que a internet deixa a sua pré-história para trás.

Genericamente, considera-se o período desde 1989 até ao início dos anos 2000 como a Web 1.0. Durante esta época, a web era sobretudo um espaço de consulta de informação e experimentação.

A capacidade de interagir com as diferentes plataformas existentes era bastante limitada. Ao nível de troca de valor, não existia a possibilidade de pagar com cartão de crédito através do site. A interoperabilidade entre diferentes plataformas era nula. Conceitos como likes, shares e reviews eram inexistentes. A comunicação entre plataforma e utilizadores era extremamente unidirecional.

Com o crash das empresas dotcom em 1999, muitas empresas da indústria faliram. A recuperação desta crise financeira (mais uma vez uma questão relativa à perceção de valor) em conjunto com a maturação das tecnologias de informação coincidiu com a emergência de grandes corporações como a Amazon, Google e Facebook.

A interconectividade entre seres humanos atingiu o expoente máximo da sua história nos últimos 15 a 20 anos, com estas empresas a dominar grande parte da internet e atingir valorizações bolsistas extraordinárias, num período conhecido como Web 2.0. Como sabemos, a interatividade e interoperabilidade destas plataformas de hoje em dia é incomparável com os primórdios da web.

Curiosamente, a troca de informação e evolução geral das plataformas e tecnologias não tem sido acompanhada por uma evolução nos métodos de pagamento e troca de valor.

Nos países desenvolvidos, o método de pagamento mais utilizado é ainda hoje o cartão de crédito. Do ponto de vista puramente técnico, esta tecnologia, desenvolvida nos anos 50, deveria ser uma relíquia do passado, devido à propensão a fraudes, dependência da aprovação por terceiros de todas as transações, e total falta de privacidade.

Friedrich Hayek, laureado com o Nobel da Economia em 1974, defendia que a lei, a cultura e o dinheiro eram os três pilares da sociedade e do estado. E afirmou que enquanto a lei e a cultura evoluíram e inovaram livremente ao longo do tempo, o dinheiro piorou, escondido atrás de mecanismos arcaicos, regulamentos, obscuridade e abusos de privacidade.

Valor nativo da internet

Mais uma vez num período de crise económica profunda, neste caso a crise do subprime nos EUA e consequente crise da dívida europeia, o developer (pseudónimo) Satoshi Nakamoto minou os primeiros blocos de Bitcoin em 2009. Pela primeira vez na história foram criados bens digitais não reprodutíveis.

O Bitcoin e subsequentes criptomoedas baseadas em blockchain vieram propor um modelo económico e monetário alternativo ao modelo vigente, nativo da internet, e que apresenta soluções para os problemas da Web 2.0 acima descritos (apesar de introduzirem outros problemas próprios).

Embora a hegemonia das plataformas corporativas continue até aos dias de hoje, há vários pensadores e utilizadores da internet que consideram que estamos a entrar num terceiro período conhecido como Web 3.0.

Estou em querer que o valor nativo da internet irá revolucionar o mundo financeiro e sociedade de formas que não conseguimos agora compreender, da mesma forma que não conseguiríamos compreender o modelo de negócio da Uber nos anos 90. Acredito ainda que a maioria dos tokens e tecnologias Web 3.0 que existem hoje em dia irão desaparecer, ou pelo menos evoluir de tal forma que serão irreconhecíveis no futuro. As tecnologias e protocolos existentes hoje em dia são a Amazon sem carrinho de compras.

Nesta nova economia de valor da Internet, o Bitcoin é a base. Apesar de não ser a criptomoeda mais inovadora ou trendy, cumpre o seu papel ininterruptamente desde 2009, e a maioria dos especialistas acredita que se irá manter ativa e funcional enquanto a internet existir.

Em paralelo, outras criptomoedas cumprem e competem para satisfazer necessidades criadas pelo mercado e assumem diferentes papéis. Vários instrumentos financeiros, simples e complexos, geridos por empresas ou por algoritmos, são criados sobre estas diferentes criptomoedas e abertos a participantes de todo o mundo.

Mais do que dinheiro fácil

As aplicações financeiras são apenas o início. A tokenização da internet está em full swing, com consequências tão imprevisíveis como interessantes.

Com a possibilidade de agregar valor a qualquer atividade digital através de tokens, as comunidades digitais passarão a ter a possibilidade de utilizar o seu valor intrínseco. Não é difícil imaginar um futuro onde os fãs de clubes de futebol detêm tokens emitidos pelo clube, que permitem partilhar do seu sucesso e votar nas decisões que o afetam. Ou que um artista emita tokens aos seus fãs, que têm tendência a valorizar à medida que este se torna mais popular.

Os videojogos terão o seu próprio token, que poderá ser trocado pelos da concorrência e até utilizado em vários mundos distintos. Estes tokens não são estáticos e podem inclusive ser utilizados para transações complexas. Por exemplo, um token NFT que dá direito a utilizar uma espada num jogo poderá ser um bom investimento, não só pelo prazer de destruir os inimigos, mas também pela possibilidade de ser "arrendado" a diferentes jogadores, ou até ser utilizado como colateral em empréstimos de outros itens.

Outro fenómeno paralelo são as DAO, ou Organizações Autónomas Descentralizadas. As DAO são a alternativa digital às empresas e associações no mundo físico. Estas organizações são tipicamente criadas com um fim definido, e os seus participantes escolhem participar nelas interagindo com os seus contratos, sem necessitar da permissão de terceiros. Neste momento, a maioria das DAO bem-sucedidas são fundações digitais que servem de reserva e governance a protocolos blockchain, mas existem muitas aplicações possíveis no futuro.

Em paralelo, empresas conhecidas estão a investir fortemente em mundos virtuais e desejam a sua tokenização. Em 2020, o Facebook tentou lançar a sua própria moeda virtual, o Diem. Após elevado backlash de diferentes governos, o projeto acabou por ser posto em stand by. Se tivesse conseguido a sua própria moeda, deixaria de ser uma simples empresa e passaria a ser o primeiro verdadeiro estado digital, com 2.85 mil milhões de cidadãos virtuais.

Todos estes fenómenos nos imergem no mundo digital. A adição de valor à internet torna-nos a todos cidadãos de múltiplos estados, aos quais aderimos através da participação nas suas economias. Ao mesmo tempo, o utilizador passará a poder fazer as suas próprias escolhas e ter um nível de soberania mais elevado sobre os seus dados pessoais, sobre o seu dinheiro e um papel mais ativo no futuro do mundo (ou mundos) a que todos pertencemos.

Qualquer previsão que tenhamos sobre o futuro concreto sairá certamente furada. Mas é certo que a adição de valor à internet, e consequentemente a todos os aspetos das nossas vidas, marcará as próximas décadas. Se esta visão vencer, a internet será uma ferramenta de transformação profunda da forma como olhamos para nós próprios.

João Batalha, diretor de Sistemas de Informação da Inventa

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